segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Decisões Morais


Toda ação articula-se em torno de uma escolha.


É uma da tarde, e você dirige uma caminhonete pelas ruas de São Paulo. De repente, você esbarra num carro parado; ao lado dele, dois motoqueiros; um dos dois enfia seu braço armado pelo vidro do motorista do carro; o assaltante ameaça e grita, ele pode atirar a qualquer momento, quer seja porque não estão lhe entregando o que ele pediu, quer seja porque não gostou do que lhe foi entregue, quer seja porque, simplesmente, ele está nervoso e a fim de matar.

Atrás de você e da cena do assalto, só buzinam os mais afastados, que não enxergam o que está acontecendo. Os mais próximos ficam paralisados, divididos entre o medo e a vergonha por não reagirem e por serem cidadãos de um lugar onde isso é possível e corriqueiro.

Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois meliantes, antes que atirem ou que fujam, ganhando, mais uma vez, dos assaltados e de todos nós.

Você não vai acelerar. É por medo de que o assaltante evite seu carro e acerte você com um tiro? É por preguiça de se envolver com polícia e investigação? Ou receia que cúmplices e familiares dos criminosos se vinguem?
Tudo bem, imaginemos que seja noite funda: não há ninguém, só os assaltantes, os assaltados e você. Ninguém verá nada. Ainda assim, você não vai acelerar?

Talvez prevaleça em você a inibição que paralisa a muitos na hora de machucar um semelhante, mesmo odioso. Ou talvez você queira agir "segundo a lei". Mas você sabe que a lei contempla e admite a "legítima defesa de terceiro"? Tudo bem, sua única obrigação jurídica é acionar a autoridade competente: fique no seu carro e ligue para a PM, uma viatura chegará a tempo para interromper o assalto e proteger os assaltados - não é verdade?

Ok, você hesitou demais, um dos assaltados acaba de ser baleado. Juridicamente, você não tem responsabilidade por não ter agido. A lei não exige de ninguém que seja herói. Mas será que isso é verdade também da moral? Você vai dormir tranquilo?

Outro dilema. Agora, imagine que, exatamente na mesma cena, você seja o assaltado. A caminhonete do dilema anterior apareceu, atropelou os assaltantes e sumiu. O bandido para quem você entregou sua bolsa está no asfalto, numa poça de sangue. Você faz o quê? Chama uma ambulância e espera para dar depoimento? Ou recupera o que lhe foi roubado e vai embora?

Já escrevi aqui mais de uma vez: admiro a teoria dos estágios do pensamento moral, de Lawrence Kohlberg. Resumindo, com nosso exemplo: é inútil querer decidir se é mais moral jogar a caminhonete para cima dos ladrões ou se esconder atrás do volante.

O que importa é a razão de nossa escolha. Se decidirmos por medo da punição, por conformidade ou mesmo por respeito à lei, nossa conduta será moralmente medíocre. Se decidirmos segundo o que nos parece certo, em nosso foro íntimo, nossa conduta -seja ela qual for- será de uma qualidade moral superior.

Mais uma coisa: Kohlberg também mostrou que a gente não melhora moralmente à força de memorizar valores ou exemplos a seguir, mas destrinchando dilemas e ponderando como e por que agiríamos de uma maneira ou de outra.

Os dois dilemas que acabo de expor são extraídos de um filme excelente, que não me sai da cabeça, "Disparos", de Juliana Reis, em cartaz desde sexta passada.

"Disparos" acontece no Rio, embora seu roteiro seja, hoje, mais paulistano do que carioca. De qualquer forma, não perca o filme e não fuja do debate íntimo sobre o que você faria numa situação parecida (até porque as chances de viver uma situação parecida aumentam a cada dia).

O Senado acaba de incluir disciplinas de ética no currículo do ensino fundamental e médio. Espero que se evite a monumental estupidez de ensinar ética normativa, ou seja, de querer enfiar valores em nossas crianças - goela abaixo, como se fossem partículas consagradas.

Para crianças como para adultos, "aprender" ética significa aprimorar a disposição a pensar moralmente, ou seja, a capacidade de debater, em nosso foro íntimo, os enigmas complexos (e, muitas vezes, insolúveis) que a realidade nos apresenta. Como disse, essa disposição só melhora à força de encarar dilemas.

Sem esperar o mais que provável desastre do novo curso, podemos ir (e levar nossos adolescentes) ao cinema. "Disparos" é um filme perfeito para pesar a complexidade da vida urbana no Brasil, ou seja, para pensar o que significa sermos morais hoje, aqui, no lugar em que estamos vivendo.


BY: Contardo Calligaris
Fonte: Jornal Folha de São Paulo – 28/11/2012

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Para que serve a Psicanálise?



"Serve para diminuir ao mínimo possível o sofrimento neurótico e o sofrimento banal, ou seja, reduzi-los ao que é totalmente inevitável; serve para tentar reorientar ou desorientar a vida da gente --desorientar é uma maneira de orientar! Enfim, serve para tornar a experiência cotidiana muito mais interessante. Pensando bem, quase tudo se inclui nessas três coisas"
Contardo Calligaris
Psicanalista e colunista da Folha


"A psicanálise é um método de investigação do modo de funcionar da mente que, bem-sucedido, tem como consequências um desenvolvimento maior da personalidade e proporcionar condições de bem-estar mental. Para que serve? Eu poderia perguntar: para que serve existir? A utilidade da psicanálise compartilha com o sentido de nossa própria existência"
Luiz Tenório Oliveira Lima
Psicanalista e professor


"Tratar das dores da alma. E é um processo tão longo para diluir a dor quanto foi para implantá-la. A substância com a qual a psicanálise lida não obedece às leis da mecânica. Não tratamos de matéria, não tratamos de concretudes: são dores da alma, substâncias de outra categoria"
Anna Veronica Mautner
Psicanalista e colunista da Folha


"Serve para possibilitar que a pessoa suporte viver a pós-modernidade. Saímos de uma sociedade que estabelecia claramente os certos e os errados. O homem atual se apavora frente a essa liberdade e se esconde atrás das fórmulas prontas de viver. Nesse contexto, a psicanálise vai na contracorrente da ideologia de que tudo tem remédio, dos livros de autoajuda e das neorreligiões. Ela transforma a angústia paralisante do homem frente à liberdade responsável das opções em uma ação criativa"
Jorge Forbes
Psicanalista e psiquiatra


"O objetivo da psicanálise é libertar o paciente de seus sintomas e de seus problemas. Acima de tudo, é um método curativo, além de ajudar a transformar o paciente em alguém mais adaptado à sua realidade e aumentar a sua inteligência emocional"
Juan-David Nasio
Psicanalista, diretor dos Seminários Psicanalíticos de Paris


FONTE: Jornal Folha de São Paulo – 27/09/2012 - "Enquete: para que serve a psicanálise."

domingo, 25 de novembro de 2012

Saber ouvir, saber falar.



Se você não é bom de papo, desenvolva a arte de ouvir. O resultado pode ser muito compensador. Quer saber por quê? Leia o texto de Cristiane Segatto.

A garota me pergunta qual é a rotina de um jornalista numa grande revista semanal. Aos 18 anos, enfrenta a tensão que antecede as provas do ENEM e de múltiplos vestibulares. Está prestes a encarar a seleção para Direito em várias faculdades, mas acha que leva jeito para Jornalismo. O pai, advogado, não gosta da ideia. Está postergando o pagamento da inscrição para o vestibular da Faculdade Cásper Líbero, uma das principais escolas de comunicação de São Paulo.

Sem querer, sem planejar, a menina teve uma ótima chance de saber algo sobre os bastidores de uma redação. Ela e eu fomos convocadas pela Justiça Eleitoral para trabalhar como mesárias na eleição do último domingo. Passamos dez horas juntas. Lado a lado, numa situação absolutamente informal e solidária.

A garota chegou à seção eleitoral com uma apostila preparatória para as provas do ENEM. Queria aproveitar para estudar nos longos minutos em que não havia eleitor na sala. De tempos em tempos, desviava os olhos do caderno e me fazia uma pergunta sobre jornalismo. 

Como é? Quanto ganha? Trabalho demais? Longas madrugadas de ralação? Autonomia para escolher as pautas? Muito cacique para pouco índio? Glamour? Festas? Gente interessante? 

Tentei responder com clareza e sinceridade. Com o maior interesse, com a maior boa vontade. Não consegui. A cada pergunta, sequer conseguia concluir uma ou duas frases. Começava a falar e já era interrompida. Ela falava sem parar. Daquele embate de vozes resultava um monólogo.  

Senti que a garota saiu daquele encontro do mesmo jeito que entrou. Se fosse jornalista, voltaria à redação com as mãos e a cabeça vazias – apesar de ter estado com o entrevistado durante dez horas. Ela ainda não sabe ouvir. Um erro fatal no jornalismo, em muitas outras profissões, na vida.

Não é a primeira vez que ouço um estudante dizer que pensa em ser jornalista porque gosta de falar. Gostar de falar não é uma habilidade fundamental nesta profissão. Em algumas situações, como no caso dessa estudante, pode até atrapalhar. Para fazer um bom trabalho, um jornalista não precisa ser um encantador de massas, um comunicador nato como Chacrinha.

Precisa, necessariamente, saber ouvir. Os melhores jornalistas que conheço falam pouco. Angustiantemente pouco, em certos casos. Por outro lado, são esplêndidos ouvintes. Ouvem o que o interlocutor diz e principalmente o que ele não diz.

Grandes verdades raramente são verbalizadas. Para revelar o que uma pessoa sente e pensa, de fato, é preciso ser capaz de captar gestos, vacilos, ambientes, a verdade explícita que detalhes (os móveis de uma casa, por exemplo) podem denunciar sobre quem os escolheu.

Em outras profissões não é diferente. Um psicólogo que não sabe ouvir está fadado ao insucesso. Um médico que não ouve se transforma numa ameaça constante à saúde pública. Um professor pode ser condenado a falar eternamente para as paredes. Um advogado, um promotor, um delegado que não sabe ouvir as palavras que não são ditas estará sempre longe da verdade.

Bons ouvintes são raros. Cada vez mais raros. A proliferação dos celulares transformou as cidades em impérios da incontinência verbal. No ônibus, no metrô, nos cinemas, em qualquer ambiente fechado, ouvimos a zoada das vozes que não se encontram.

Alguém dirá que se uma pessoa fala ao aparelho é sinal de que outra a ouve do lado de lá da linha. Não necessariamente. Do outro lado alguém ouve e não escuta. Tem urgência em falar, em vencer o delay que picota a conversa e traz de volta a voz do outro. Aquela voz que precisa ser instantaneamente subjugada.

Em tempos de falação vazia, nos esquecemos de ouvir. Essa é a causa de qualquer parte de nossos desentendimentos. Temos muito que aprender com os grandes ouvintes – sejam eles jornalistas, psicólogos, filósofos, professores, qualquer pessoa que entenda o valor da escuta bem feita. Qualquer pessoa que tenha paciência e interesse genuíno pelo outro.

Saber ouvir é também uma característica das pessoas mais influentes. Pouca gente se dá conta disso. Em geral, acreditamos que líderes são necessariamente aqueles que dispõem de grande capacidade de expressão verbal e poder de convencimento. Uma pesquisa publicada recentemente no Journal of Research in Personality traz um novo ponto de vista.

O pesquisador Daniel Ames da Columbia University, nos Estados Unidos, coletou informações sobre 274 estudantes de MBA da East Coast University. Eram moças e rapazes com idade média de 28 anos.

Colegas de trabalho desses voluntários foram convidados a dar notas sobre o poder de influência de cada. Deram informações sobre a capacidade deles de fazer um colega mudar de ideia, capacidade de conquistar apoios para realizar tarefas, capacidade de trabalhar com pessoas com diferentes opiniões e interesses, capacidade de reverter, a seu favor, a opinião dos presentes em uma reunião etc.

Os participantes também foram avaliados em itens capazes de apontar as habilidades de expressão verbal e de capacidade de ouvir. O que o pesquisador descobriu? Os três achados principais:

Bons ouvintes têm grande poder de influência, independentemente de sua capacidade verbal. Quem sabe ouvir têm acesso às crenças, aos objetivos, aos conhecimentos de seus interlocutores. Isso porque as pessoas revelam informações com mais facilidade quando percebem que o outro tem interesse genuíno por elas.

A escuta bem feita permite que os bons ouvintes entendam o contexto das situações e possam direcionar suas tentativas de persuasão no sentido correto.

Quando as pessoas se sentem ouvidas de forma genuína, elas tendem a apoiar os bons ouvintes nas mais variadas situações, inclusive nos embates do ambiente corporativo. Torço pela garota assustada com o vestibular. Ela tem todo o tempo do mundo para aprender a fazer diferente. Se eu encontrá-la novamente, vou tentar dizer. Espero que ela me ouça.

Saber ouvir não é só uma questão de sobrevivência na profissão. É também um fator que contribui para o bem-estar de quem fala e de quem ouve. Quem ouve e realmente escuta nunca sai de uma conversa do mesmo jeito que entrou. Sai melhor e mais interessante.

BY: CRISTIANE SEGATTO
FONTE: Revista Época 



quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Questionando o discurso "Científico"



Transcrição do depoimento da jornalista Laura Capriglione no debate promovido pelo Centro de Convivência É de Lei, sobre “Mídia, Drogas e HIV” (14/9/2012)


Eu queria agradecer o convite e a oportunidade de estar aqui com vocês. Cabe a mim falar sobre um lado delicado dessa história toda que é o lado da cobertura da imprensa. Eu digo que é um lado delicado porque a imprensa, se por um lado ela joga luzes, ela também pode muito bem, e com a melhor das intenções, reforçar o maior dos preconceitos. (...) Essa cobertura desse evento [a operação na cracolândia] foi pra nós (...) uma experiência extremamente reveladora do que é o universo do crack. Digo isso porque não sei se vocês se lembram quando o crack apareceu, há 20 anos, uma das primeiras matérias que se veiculou foi na Veja, do Elio Gaspari, muito bem escrita como sempre, e a matéria dele começava com um tuiiiimmm, e com esse “tuiiiimmm” a pessoa tava morta, tava frita, “tuiiiimmm” era o suposto “tuiiiimmm” que a droga deflagrava nos sistemas neuronais e aí vinha um linguajar supostamente científico pra dizer exatamente aquilo que o meu colega da mesa mencionou, pra construir a ideia de uma droga que tinha alguns efeitos devastadores, aliás a palavra devastador nunca foi tão utilizada quanto na cobertura do crack, pra dizer o mínimo se diz que o crack é uma experiência devastadora. Mas ele faz muito mais que isso, ele queima os neurônios – tô citando coisas que apareceram na imprensa – ele queima os neurônios, uma tragada vicia inevitavelmente, ele destrói a família, destrói os laços, ele enfim desumaniza a pessoa que deixa de ser um cidadão como nós e passa a ser uma pessoa que precisa de uma intervenção total, e essa intervenção pode ser policial, por que não?, mas pode ser uma internação forçada, compulsória, como a gente ouviu de novo ser mencionado agora na cobertura da cracolândia, essa foi uma das vias que mais acolhimento tiveram... qual a saída? Internação compulsória, isso foi defendido por autoridades, governo do estado...

Pra nós, eu que trabalho na Folha, que é aqui no Centro, quase mergulhada na cracolândia, a gente tem cracolândia de um lado, de outro, na frente e atrás, e pra nós, felizmente ou infelizmente, essa proximidade, quando a gente ouvia as balas, ouvia os tiros, a redação saía, foi muito bom porque a gente tava ali do lado, e a Folha conseguiu flagrar os tiros de bala de borracha, as bombas de efeito moral, isso virou matéria, virou TV Folha, virou um monte de coisa. (...) Isso foi uma experiência muito rica pros profissionais que estavam ali envolvidos. (...) “os craqueiros são pessoas sem o menor discernimento, estão com o cérebro queimado, a droga destruiu qualquer traço de humanidade, generosidade, inteligência”, quem durante muito tempo teve o monopólio da fala sobre os craqueiros foi exatamente a turma dos médicos, a turma dos psiquiatras, a turma das clínicas, essa turma que acabou tendo o monopólio e hoje a gente pode, as pessoas começam a perceber cada vez mais, esse discurso longe de ser científico é um discurso interessado, porque a maior parte dessas pessoas são também donas de clínicas, donas de entidades e são contratadas pelo poder público, são entidades que têm clínicas, convênios com a secretaria da saúde, enfim... só que isso era um pequeno detalhe que passava totalmente despercebido da imprensa, que entrevistava médicos que o tempo inteiro estavam disponíveis pra falar sobre os efeitos devastadores do crack na experiência de um dependente químico.
O que essa experiência da invasão, da disputa do território da cracolândia, fez foi obrigar os jornalistas, que ficaram muito tempo, quase vinte anos, no conforto dessa conversa por telefone na maior parte das vezes, longe da cracolândia, e eu queria só lembrar quantas vezes a gente viu notícias nos jornais, particularmente na televisão, de repórteres muito bem intencionados, por isso eu digo que o problema não foi falta de boas intenções, o problema é um pouquinho maior, tem a ver com preconceito e uma série de coisas, quantas vezes a gente viu aquela cena do carro da imprensa, do carro da televisão, sendo apedrejado pelos craqueiros violentíssimos? A gente viu essa cena um milhão de vezes, um zilhão de vezes, com a melhor das boas intenções. Mas ninguém parou pra se perguntar, só que hoje a gente para pra se perguntar, por isso eu digo que foi um momento que a gente teve de chegar perto do problema, ninguém parou pra se perguntar por que é que aquelas pessoas apedrejavam os carros da imprensa. A maior parte apedrejava os carros da imprensa pelo único e acho que legítimo motivo que essas pessoas têm direito à própria imagem, tem direito a preservar a própria imagem, coisa que não passava pela cabeça de alguém que julgava os caras desumanos demais pra defender a própria imagem, que essas pessoas tinham esse direito. Por que eles tinham de ser expostos, e isso não é uma prerrogativa, diga-se de passagem, de usuários de crack, qualquer população que vive nessas situações limites são pessoas que ficam extremamente constrangidas com essa exposição na mídia. (...) mas essa imagem dos carros de imprensa sendo apedrejados pelos craqueiros era a mão na luva, era perfeito pra provar a tese que os craqueiros eram não-pessoas, eram animais, pior que animais, que a droga tinha desumanizado esses caras e que eles não mereciam nenhuma consideração a não ser uma intervenção total.
Os jornalistas foram pra cracolândia (...), e tomaram um choque com o que viram lá e com as situações que acabaram presenciando. Eu queria dizer que, entre outras coisas, como a gente tava naquela ideia de que alguma coisa precisa ser feita pra salvar essas pessoas de si mesmas, dessa droga que aliena as pessoas de si mesmas, logo no começo parecia que tudo podia, a Secretaria [dizia que] com gentileza não dá pra tratar, e ela não tava falando sozinha, ela tava dialogando com uma ideia que a sociedade tinha dessa população. E vocês podem ter certeza que teve um apoio enorme a essa intervenção da Secretaria, e dentro da Folha, no espaço de comentários (...) era esse mesmo, tira todo mundo, limpa a rua.

Foi muito importante a presença da Defensoria Pública com aquele panfletinho simplíssimo, que falava de direitos, o cara não tem direito de andar na rua, não tem o direito de ficar parado, de sentar na calçada?, parecia uma coisa normal que ele não tivesse... pra se ver o grau de preconceito que tinha, as premissas com que a gente foi pra rua eram as mais nefastas possíveis. Bom, aí teve um jornalista da Folha que saiu andando com os meninos pra medir quanto que esses caras tinham que andar por dia por conta dessas abordagens da polícia e desse impedimento da polícia de que essas pessoas ao menos sentassem. Então se começou a andar junto com as pessoas, começou a conversar com as pessoas, e o que a gente pode ver foi exatamente a desconstrução desses mitos que cercavam os usuários de crack.

Eu tenho certeza que a gente é melhor hoje do que era antes, por incrível que pareça, se essa cobertura, se essa guerra insana que a polícia, que o governo do estado, que a prefeitura moveram, insana mesmo porque a gente vê que os efeitos disso foram simplesmente uma espécie de castigo a essa população que já é tão castigada pela vida, mas um segundo efeito foi aproximar a gente de uma realidade que a gente ignorava solenemente. Porque a gente tava contaminada por esse discurso médico.
Vou dar alguns exemplos, são coisas bestas, bobas, agora recentemente a TV Folha fez uma matéria, a Folha foi atrás de uma velhinha que tava procurando a Desirée, que tava grávida, ela virou personagem porque estava grávida e tava na cracolândia e a sogra dela queria que ela voltasse pra casa porque a Desirée tava ali naquela vida louca. A Desirée é uma das que tá presa, acusada de tráfico, e teve o filho na cadeia. Muito tempo depois, agora, ela teve o filho, ela tá na cadeia, não tá usando crack, tá linda, tá maravilhosa. Fizeram um TV Folha com a Desirée (...), ela tá com o filho e quer continuar com o filho. Quando o pessoal da TV Folha tava editando o material, veio uma menina muito legal e perguntou: Laura, por que vai sair uma matéria dessas agora, pra pegar e mostrar o quê, isso parece novela do SBT, pra que serve essa matéria?

Bom, quando a gente tava fazendo matéria sobre as mães do crack eu fui até os conselhos tutelares, a pauta foi encaminhada com uma única razão, coitadinhas das crianças que são geradas e nascem numa situação como essa. O poder público tem que tirar essas crianças das mães, o objetivo da pauta era esse. Tem que tirar essas crianças dessa situação absurda e tal. Fui lá no conselho tutelar, qual a posição do conselho tutelar? Tira, tira já, tira já! A posição do conselho tutelar daqui, da Praça da República, é tirar já as crianças dessa situação de risco que as crianças não têm nada a ver com a vida da mãe, não sei que. Eu vou falar francamente que achei que não era tão louco isso, não era tão louca essa posição, que de repente podia até ser, e de repente apareceu na minha frente uma mulher dependente de crack, que não era mais dependente de crack, que tava livre, e que disse, olha, eu só saí do crack por causa do meu filho, a minha única ponte com a vida foi meu filho. Se eu perdesse naquela hora o meu filho eu provavelmente não saía nunca mais. Bom, não sei se não saía mais ou não, mas tornou muito mais difícil aquela equação, não podia ser mais simplesmente assim, a mulher tá no crack, arranca o filho dela. O caso da Desirrée, por mais que parecesse uma novela do SBT, mostrava uma outra coisa, que não era uma via de mão única, que precisa ser visto a situação particular de cada uma das mulheres, não pode ser uma norma geral, você tinha que olhar praquele ser humano, não podia ser uma norma tudo que se impusesse pra supostamente salvar a criança. O que começou a acontecer, e é isso que eu queria dizer pra encerrar, aquilo que antes tava tudo muito claro, pra todo jornalista: o craqueiro era um bicho, o filho do craqueiro ou da craqueira tinha que ser arrancado deles, a internação compulsória a gente não gosta muito disso mas também pode mesmo ser a única saída então vamos nessa – pode ser, não é a única saída –, a gente teve de deixar de lado isso pra começar olhar pra cada um daqueles seres humanos sofridos de uma outra maneira.
Eu acho que a gente errou muito e ainda vai errar muito também. Mas eu acho que aquela experiência da cracolândia, às vezes a gente era, junto com a Defensoria, os únicos que estavam ali, pra falar com eles, pra ouvir as reclamações deles, pra flagrar a viatura da polícia passando duas vezes em cima da cabeça dum menino que foi atropelado numa dessas abordagens (...), de fato a gente teve de começar a se relacionar com uma gente que a gente desconhecia completamente. Eu acho que as coberturas de crack tendem a melhorar, tendem a ser menos preconceituosas, mas eu queria dizer também que esse contradiscurso médico em relação a essa posição que é a favor da internação, que só com drogas pesadas... isso aí precisa melhorar muito, essa comunicação precisa melhorar muito, desse outro lado, o outro jeito de lidar com a coisa, porque de novo: os adeptos dessas medidas totais eles estão sempre disponíveis, se você ligar pra eles à meia-noite e meia eles atendem o telefone e falam, olha, os efeitos são devastadores, e fazem aquela cara: de-vas-ta-dores, e tudo bem, e a gente escreve, devastadores... é preciso que o outro discurso seja feito também, que outras experiências sejam mostradas. Por exemplo, esse vídeo aí [mostrado pela Defensoria], com esse cara aí falando, é incrível, se queimou os neurônios desse menino e ele falando desse jeito, eu tô querendo também esse negócio... (risos) eu fui numa clínica que era mantida em São Bernardo que aplica esse princípio dos doze passos e que é de um dos médicos mais disponíveis pra dar entrevista, falando que a única saída é a internação, não sei quê. Bom, aí tinha nessa clínica tratava de dependência de álcool e drogas então tinha álcool e o resto tudo era crack ali. E tava todo mundo sem nada, sem fumar, sem nada, e teve uma mesa-redonda, todo mundo falando... A vivacidade daqueles caras acabou com qualquer ideia que eu tivesse sobre esses efeitos arrasadores, o curto-circuito neuronal, pega fogo no cérebro e aquela coisa toda, acabou, eu vi que a gente precisava aprender tudo de novo sobre crack.

Fonte: Observatório da Imprensa
21/11/2012

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Autismo: Uma muralha de Silêncio




Algumas crianças, logo ao nascer, são cercadas por uma muralha invisível que as impossibilita de interagir com o meio e as pessoas que a rodeiam. Esta muralha, nos primeiros dois anos de vida, contém espaços porosos que permitem aos pais um grau razoável de interação com o bebe. Mas, infelizmente, a cada ano que passa, essa porosidade vai diminuindo e, aos seis anos, na maioria dos casos, a criança está totalmente isolada, dentro da muralha do autismo.

Assim como não há duas crianças idênticas, também não há dois autistas idênticos. Essa diversidade dificulta o diagnóstico precoce, tão fundamental no caminho da cura dessa síndrome. Até mesmo pediatras e psicólogos experientes encontram dificuldades para fazer o diagnóstico, nos primeiros anos de vida do bebe, dependendo do grau do transtorno. Os exames complementares, mesmo os mais sofisticados, como tomografia de crânio ou ressonância magnética, pouco ajudam na conclusão final. É o relato dos pais e, algumas vezes, da escola, que possibilita o diagnóstico clínico.

A falta de tratamento adequado, logo nos primeiros anos, compromete o desenvolvimento cognitivo, emocional e psicológico da criança. Daí a necessidade do diagnóstico nos três primeiros anos de vida da criança, e a necessidade de desenvolver um trabalho interdisciplinar continuado, que ofereça propostas de tratamento e educação especializados. 
 
O diagnóstico clínico considera três critérios básicos. O primeiro aponta a dificuldade ou ausência de interação social – marcada pela incapacidade de estabelecer contato visual, se relacionar com crianças da mesma faixa etária e compartilhar sentimentos. Essa falta de interação muitas vezes dificulta a amamentação. É comum durante o processo de diagnóstico, escutar da mãe que a criança não conseguia sugar o seio.

O segundo critério revela o desenvolvimento tardio da fala – não raro a criança não se comunica verbalmente de nenhuma maneira. A dificuldade de entrar na linguagem produz, desde os primeiros meses de vida, o desinteresse pelo contato visual – preferem olhar para objetos e não para rostos. Não imitam comportamentos, não bocejam, não choram ou riem quando outros fazem na sua frente.

O terceiro critério de diagnóstico revela os movimentos repetitivos e rítmicos do corpo. Elas repetem sempre o mesmo gesto, uma compulsão totalmente desprovida de sentido aparente. Com bastante frequência, acredita-se que se tornou retardada mental e até mesma surda. Não é nada disso. O autismo se fecha progressivamente a qualquer relação humana, por causa, muito provavelmente, do sofrimento insuportável de não se reconhecer diante do outro.

Crianças com quadro de autismo que recebem atendimento precoce - clínico e educacional especializado - apresentam melhoras significativas, desenvolvem a linguagem, integram-se ao meio ambiente, frequentam escolas e, quando adultas, perdem grande parte das características de autista, conseguindo, então, se integrar socialmente.

O fundamental na síndrome autista é que o tratamento inicie antes dos primeiros três anos. É durante esse período que se pode cogitar um processo de cura.
Maria Holthausen

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Um Presente de Natal Inesquecível


 

No ano em que se comemora o bicentenário da primeira edição dos contos dos irmãos Grimm, a Cosac Naify se orgulha de apresentar ao leitor brasileiro uma obra rara: num feito inédito no mercado editorial do país, lança a versão original das 156 histórias, nunca antes reunidas em português, diretamente traduzidas do alemão. A coletânea, dividida em dois tomos como a original (publicados em 1812 e 1815), conta com tradução da especialista Christine Röhrig e ilustrações do gravurista pernambucano J. Borges. A Cosac Naify manteve os prefácios escritos pelos Grimm e algumas notas de cunho histórico, além de trazer uma apresentação exclusiva do professor doutor Marcus Mazzari.

É com ar de novidade que o leitor vai redescobrir contos cujas adaptações, e seus famosos “viveram felizes para sempre”, diferem completamente dos originais, com desfechos surpreendentes (e às vezes chocantes!). 

A editora convidou o célebre gravurista pernambucano J. Borges, que conseguiu captar o maravilhoso dos textos e as metamorfoses da história por meio de uma técnica essencialmente nacional: a xilogravura. Borges talhou os desenhos em madeira, passou tinta e carimbou no papel. Muito diferente das ilustrações tradicionais das obras dos irmãos Grimm, o traço do cordelista abraça com naturalidade e humor a excentricidade e o maravilhoso da narrativa.

Apoiada pelo Goethe Institut, os dois volumes ficam acondicionados em uma caixa, mantendo a organização proposta pelos autores. A editora preparou, além da edição convencional, uma outra especial, limitada. Esta tem capa dura revestida com tecido e luva em material transparente com impressão em serigrafia. A edição convencional, em brochura, vem em luva de papel cartão e traz na capa elementos icônicos das ilustrações.

FONTE: Site da Editora


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Cronos Implacável




Nossa vida é circunscrita, basicamente, por um tempo histórico, um espaço geográfico e um gênero sexual. Esses três elementos emolduram nosso lugar no mundo. Constituem a imagem que nos representa no campo da Cultura.

No entanto, mesmo sendo lugares fundantes, não são necessariamente lugares fixos. Transcendemos com facilidade as fronteiras de nosso espaço geográfico. Podemos ir viver numa outra cidade, estado, país ou continente e nos sentirmos em casa, plenamente adaptados a uma nova cultura e uma nova língua. O mesmo acontece com o gênero sexual. A biologia pode não nos definir. E quando isso acontece, podemos também transcendê-la.

Do tempo, porém, dificilmente conseguimos transcender. Nascemos e somos mergulhados nas cresças e nos valores constituintes, desse curto período de tempo que compõe uma vida humana. Somos filho de um período histórico. Somos homens e mulheres que vivem de acordo com as verdades, as ficções de nosso tempo. Em qualquer lugar do mundo, sofremos os efeitos do tempo que nos constitui.

Nossas experiências do passado são efêmeras. Elas nos atravessam como relâmpagos. Entramos num prédio muito antigo e somos mergulhados, por exemplo, no século XI. Enquanto andamos pelos labirintos que definem a arquitetura daquele século, temos a estranha sensação de que podemos transpor o tempo. As grossas paredes remetem-nos há um tempo que não é nosso, mas que, por uma fração de segundos, podemos senti-lo atravessando as pedras.

Não importa a história daquele lugar. Sobre ela, podemos aprender sentados em nossa poltrona preferida, com um livro na mão; ou na sala de aula, escutando uma aula de história; ou na tela do computador, em qualquer lugar do mundo. Mas este aprendizado é apenas um exercício racional, como qualquer outro. Ele nunca nos proporcionará aquela estranha e densa sensação da transcendência do tempo. Aquele ínfimo momento em que a fenda do tempo se abre e nos remete a um tempo imemorial há muito perdido.

Ao sairmos desses espaços centenários, verdadeiros túnel do tempo, somos, na maioria das vezes, engolfados por uma cidade do tempo de hoje. Cidades constituídas por largas avenidas, com seu trânsito barulhento e restos de conversas com as quais nos identificamos. E, mais uma vez, sentimo-nos seguros em nossa comunidade adormecida nas certezas de seu próprio tempo.

Maria Holthausen

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Cinquenta Tons de Cinza: Uma Nova Onda Sadomasoquista?



Cinquenta Tons de Cinza, romance da escritora inglesa Erika James é o best-seller do momento. Quem está acompanhado as repercussões dessa obra na mídia, principalmente na internet, sabe que o livro faz parte de uma trilogia: Cinquenta Tons de Cinza, Cinquenta Tons Mais Escuro e Cinquenta Tons de Liberdade.

O tema que conduz essa trilogia não é novo. As tramas do desejo sadomasoquista tecem uma multiplicidade de romance desde o século XVIII, com o Marques de Sade. Da trilha aberta por Sade, construiu-se as diversas veredas do erotismo sadomasoquista, no campo da literatura. Algumas muito interessantes, outras, apenas, oportunistas.

Sem entrar no julgamento estético do texto da autora inglesa. Se é que existe algum. O que me apaixona nesse livro são as discussões que ele causa. Não consigo deixar de pensar nas polêmicas que todos os romances, sobre esse tema, promoveram sempre que foram publicados. O erotismo e, principalmente, o erotismo sadomasoquista sempre causou e, parece, continua a causar, um movimento de atração e repulsa. 

Em nossa época, os que são atraídos por esse tema compram os livros e enchem as salas de cinema. Já que a maioria desses livros é transformada em filme, e esse também será. Para esses fieis defensores, a fantasia sadomasoquista faz parte da vida erótica de todo mundo. Falar sobre elas parece ser um alívio, ou um grito de liberdade. E quando uma dona de casa de classe média, mãe de dois filhos, pode publicar suas fantasias sadomasoquistas, mesmo que seja sob o véu do texto literário; nada mais os impede de reconhecer o seu próprio desejo por elas.

Do outro lado, encontram-se as pessoas que sentem repulsa por essas fantasias. Algumas por posição política, como as feministas. Para elas, a submissão feminina estabelecida no par sado-masoquista é uma afronta à luta pela igualdade nas relações heterossexuais. E, portanto, esse tipo de “literatura” deve ser combatida.

Para outros, a repulsa advém pelo viés moral. Como os religiosos que defendem a sexualidade apenas como um rito necessário à procriação. O prazer suscitado por esse tipo de fantasia faz parte do pecado da luxuria. Por isso mesmo, esses livros deveriam ser proibidos, eliminados ou queimados. Afinal, não se negocia com o reino do céu.

Fazendo parte de um grupo ou de outro, todos se posicionam. E pelo sucesso de vendas do livro, parece-me que tem muita gente desejando experimentar essa fantasia. Uma fantasia que, como apontei no início do texto, não é nova, mas que de tempos em tempos se renova.

Maria Holthausen

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A Síndrome do Ninho Vazio




Para alguns pais, é muito difícil a separação dos filhos. O luto do ninho vazio é acompanhado de um sentimento melancólico tão profundo que, muitas vezes, induz a períodos de depressão. Tentando se defender dessa experiência dolorosa, esses pais fazem o possível e o impossível para manter os filhos, por um longo tempo, em casa.

Para sustentar essa escolha perante aos amigos e outros membros da família, nunca faltam boas desculpas. A mais usada, e a de maior valor de persuasão, é a questão financeira. As crianças – observe como a maioria desses casais tendem a chamar os filhos de “as crianças” – ainda não ganham suficiente para se manterem sozinhas. Então, por que se sacrificar para sair de casa antes do casamento. Afinal, a casa é grande e tem espaço de sobra para todos. Ou então, quando  “as crianças” já estão ganhando o suficiente para se sustentarem sozinhas, ainda tem a desculpa de que em casa é mais fácil fazer uma boa poupança para o futuro.

Como rebater um argumento tão racional, lógica e consistente. Na verdade, não é questão de rebater, nem mesmo, de recriminar essa escolha. O que me interessa pensar são as dificuldades e o medo que alguns pais demonstram, frente à perspectiva de voltarem a viver a experiência de casal. Aquela experiência primeira, a convivência que antecedeu a chegada dos filhos. Para alguns, esse tempo foi muito rápido. Os filhos chegaram logo depois do casamento. Para outros, durou alguns anos. Nesse último caso, se a vivência a dois foi positiva, eles terão menos medo de recuperar o status de casal.

Acredito que casais que tiveram filhos logo após o casamento têm mais dificuldade em aceitar a vivência a dois. O casamento adquiriu, muito cedo, a significação de família. Pensar-se sem a convivência diária dos filhos é assustador.  A falta dos filhos descortina a falta de significação do casal. A perspectiva de viver a dois não tem consistência, é vazia. Esses casais teriam que estar dispostos a se reinventar. A construir juntos, um novo sentido para suas vidas. O que pode ser muito gratificante e enriquecedor. Mas sempre é assustador. Nós, seres humanos, temos muito medo de mudanças.

Outra dificuldade que gera o medo da separação dos filhos, para alguns casais, é que a vivência a dois, no início do casamento, foi tão frustrante que a possibilidade de que ela se repita é assustadora. Nestes casos, o medo é que ao voltar ao status de casal, a separação será iminente. E, infelizmente, manter os filhos por o mais longo tempo possível dentro de casa, é percebido como a melhor solução. Uma solução que remedia o problema, mas não resolve.

Afinal, como já dizia o guru dos anos 70, Gibran Kahlil, “vossos filhos não são vossos filhos, são os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Vêm através de vós, mas não de vós. E embora vivam convosco, não vos pertencem...”

Maria Holthausen


segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Amar é verbo intransitivo?




O amor é da ordem do encontro. Embora, como disse o poeta, existam tantos desencontros pela vida. É assim mesmo. Quem é que não tem uma história de desencontro para contar? Os desencontros acontecem sempre que topamos com a pessoa certa, na hora errada. A hora errada é o momento em que não temos disponibilidade ou amadurecimento, para experimentar um relacionamento com aquela pessoa que acabamos de conhecer e nos apaixonar. E, às vezes, é o outro que não está disponível para viver o amor.

Para algumas pessoas, é difícil admitir que a hora errada exista. Que os desencontros façam parte da experiência amorosa. Que algumas paixões germinam em solo árido, estéril e improdutivo. Não admitir a negatividade dessa experiência amorosa é partir para o sacrifício. Pois, para manter esse tipo de paixão é necessário muito sacrifício, muitas lágrimas, muita dor.

Parece absurdo pensar que a paixão pode acontecer num momento errado. Afinal, o amor é sempre visto como pura positividade: um bem em si mesmo. É quase como se nada pudesse dar errado, quando amamos e somos amados. Temos tanta fé nessa positividade, que esquecemos que o amor não tem lógica, que ele não pertence aos domínios da razão.

Por não ser lógico nem racional, ele é sempre uma experiência radical. Uma experiência que pode ser sublime ou devastadora. Que pode nos dar muitas alegrias, mas, também, nos fazer imensamente infelizes. O amor gera vidas, mas também mata. Não podemos negar essa dupla face do sentimento amoroso.

Quem insiste em pensar que toda paixão, só por existir, tem que dar certo; cai numa armadilha terrível. Expõe-se a sacrifícios absolutamente inúteis, transformando-se em vítima, ou em carrasco do amor. É esse tipo de pessoa que, ao experimentar o lado terrível do amor, passa a rejeitar esse sentimento. Não acredita mais no amor. Com medo de sofrer de novo, e sem coragem para dizer não aos encontros ruins, prefere abrir mão da experiência amorosa.

Maria Holthausen



sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Aprendendo a Viver com a Diferença




Menino com Down vira modelo de gigante britânica do varejo

Em um esforço para aumentar a diversidade de suas campanhas, uma loja de departamento britânica contratou um modelo com Síndrome de Down para promover sua linha de roupas infantis.

A campanha da gigante do varejo Marks & Spencer na realidade surgiu a partir da sugestão da mãe do novo garoto-propaganda da loja, Sebastian, de quatro anos.
Caroline Branco, da cidade de Bath, reclamou sobre a falta de diversidade nas propagandas que anunciam roupas e outros produtos para crianças na TV, revistas e outdoors.
Segundo ela, essa homogenização das campanhas publicitárias pode contribuir para aumentar o sentimento de isolamento de famílias que descobrem ter um filho com Síndrome de Down.
"Nós não sabíamos que Seb tinha Síndrome de Down quando ele nasceu e foi uma época muito assustadora, porque não estávamos preparados", disse Branco.
"Me lembro de ver todos aqueles anúncios na TV com famílias e crianças e não havia ninguém diferente, todo mundo era perfeito. Tudo isso só aumentou meu sentimento de isolamento e medo."

Uniformes

Segundo Branco, recentemente, quando Sebastian entrou na escola e ela teve de comprar uniformes para o filho, novamente lhe chamou a atenção a falta de diversidade nas campanhas publicitárias.
Foi por isso que ela fez a sugestão à Marks & Spencer, para que houvesse uma mudança na padronização dos modelos da loja - o que resultou na contratação do seu filho como garoto-propaganda.
"Espero que as pessoas percebam que vivemos como qualquer outra família. Seb canta, dança, encanta todo mundo", afirma Branco.
"Não quero que pensem que é uma tragédia (ter um filho com Síndrome de Down), porque a realidade está muito longe disso", completa.
A Marks & Spencer é a maior rede britânica de lojas de departamento. A cadeia tem mais de 700 lojas espalhadas pela Grã-Bretanha, além de ter presença em outros 40 países.

Fonte: Site BBC Brasil.


terça-feira, 18 de setembro de 2012

Isso é Desenvolvimento?



DEGRAUS DA ILUSÃO
Lia Luft

Fala-se muito na ascensão das classes menos favorecidas, formando uma “nova classe média”, realizada por degraus que levam a outro patamar social e econômico (cultural, não ouço falar). Em teoria, seria um grande passo para reduzir a catastrófica desigualdade que aqui reina.

Porém receio que, do modo como está se realizando, seja uma ilusão que pode acabar em sérios problemas para quem mereceria coisa melhor. Todos desejam uma vida digna para os despossuídos, boa escolaridade para os iletrados, serviços públicos ótimos para a população inteira, isto é, educação, saúde, transporte, energia elétrica, segurança, água, e tudo de que precisam cidadãos decentes.

Porém, o que vejo são multidões consumindo, estimuladas a consumir como se isso constituísse um bem em si e promovesse real crescimento do país. Compramos com os juros mais altos do mundo, pagamos os impostos mais altos do mundo e temos os serviços (saúde, comunicação, energia, transportes e outros) entre os piores do mundo. Mas palavras de ordem nos impelem a comprar, autoridades nos pedem para consumir, somos convocados a adquirir o supérfluo, até o danoso, como botar mais carros em nossas ruas atravancadas ou em nossas péssimas estradas.

Além disso, a inadimplência cresce de maneira preocupante, levando famílias que compraram seu carrinho a não ter como pagar a gasolina para tirar seu novo tesouro do pátio no fim de semana. Tesouro esse que logo vão perder, pois há meses não conseguem pagar as prestações, que ainda se estendem por anos.

Estamos enforcados em dívidas impagáveis, mas nos convidam a gastar ainda mais, de maneira impiedosa, até cruel. Em lugar de instruírem, esclarecerem, formarem uma opinião sensata e positiva, tomam novas medidas para que esse consumo insensato continue crescendo – e, como somos alienados e pouco informados, tocamos a comprar.

Sou de uma classe média em que a gente crescia com quatro ensinamentos básicos: ter seu diploma, ter sua casinha, ter sua poupança e trabalhar firme para manter e, quem sabe, expandir isso. Para garantir uma velhice independente de ajuda de filhos ou de estranhos; para deixar aos filhos algo com que pudessem começar a própria vida com dignidade.

Tais ensinamentos parecem abolidos, ultrapassadas a prudência e a cautela, pouco estimulados o desejo de crescimento firme e a construção de uma vida mais segura. Pois tudo é uma construção: a vida pessoal, a profissão, os ganhos, as relações de amor e amizade, a família, a velhice (naturalmente tudo isso sujeito a fatalidades como doença e outras, que ninguém controla). Mas, mesmo em tempos de fatalidade, ter um pouco de economia, ter uma casinha, ter um diploma, ter objetivos certamente ajuda a enfrentar seja o que for. Podemos ser derrotados, mas não estaremos jogados na cova dos leões do destino, totalmente desarmados.

Somos uma sociedade alçada na maré do consumo compulsivo, interessada em “aproveitar a vida”, seja o que isso for, e em adquirir mais e mais coisas, mesmo que inúteis, quando deveríamos estar cuidando, com muito afinco e seriedade, de melhores escolas e universidades, tecnologia mais avançada, transportes muito mais eficientes, saúde excelente, e verdadeiro crescimento do país. Mas corremos atrás de tanta conversa vã, não protegidos, mas embaixo de peneiras com grandes furos, que só um cego ou um grande tolo não vê.

A mais forte raiz de tantos dos nossos males é a falta de informação e orientação, isto é, de educação. E o melhor remédio é investir fortemente, abundantemente, decididamente, em educação: impossível repetir isso em demasia. Mas não vejo isso como nossa prioridade.

Fosse o contrário, estaríamos atentos aos nossos gastos e aquisições, mais interessados num crescimento real e sensato do que em itens desnecessários em tempos de crise. Isso não é subir de classe social: é saracotear diante de uma perigosa ladeira. Não tenho ilusão de que algo mude, mas deixo aqui meu quase solitário (e antiquado) protesto.

Fonte: Revista Veja