segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Para que serve a Psicanálise?



"Serve para diminuir ao mínimo possível o sofrimento neurótico e o sofrimento banal, ou seja, reduzi-los ao que é totalmente inevitável; serve para tentar reorientar ou desorientar a vida da gente --desorientar é uma maneira de orientar! Enfim, serve para tornar a experiência cotidiana muito mais interessante. Pensando bem, quase tudo se inclui nessas três coisas"
Contardo Calligaris
Psicanalista e colunista da Folha


"A psicanálise é um método de investigação do modo de funcionar da mente que, bem-sucedido, tem como consequências um desenvolvimento maior da personalidade e proporcionar condições de bem-estar mental. Para que serve? Eu poderia perguntar: para que serve existir? A utilidade da psicanálise compartilha com o sentido de nossa própria existência"
Luiz Tenório Oliveira Lima
Psicanalista e professor


"Tratar das dores da alma. E é um processo tão longo para diluir a dor quanto foi para implantá-la. A substância com a qual a psicanálise lida não obedece às leis da mecânica. Não tratamos de matéria, não tratamos de concretudes: são dores da alma, substâncias de outra categoria"
Anna Veronica Mautner
Psicanalista e colunista da Folha


"Serve para possibilitar que a pessoa suporte viver a pós-modernidade. Saímos de uma sociedade que estabelecia claramente os certos e os errados. O homem atual se apavora frente a essa liberdade e se esconde atrás das fórmulas prontas de viver. Nesse contexto, a psicanálise vai na contracorrente da ideologia de que tudo tem remédio, dos livros de autoajuda e das neorreligiões. Ela transforma a angústia paralisante do homem frente à liberdade responsável das opções em uma ação criativa"
Jorge Forbes
Psicanalista e psiquiatra


"O objetivo da psicanálise é libertar o paciente de seus sintomas e de seus problemas. Acima de tudo, é um método curativo, além de ajudar a transformar o paciente em alguém mais adaptado à sua realidade e aumentar a sua inteligência emocional"
Juan-David Nasio
Psicanalista, diretor dos Seminários Psicanalíticos de Paris


FONTE: Jornal Folha de São Paulo – 27/09/2012 - "Enquete: para que serve a psicanálise."

domingo, 25 de novembro de 2012

Saber ouvir, saber falar.



Se você não é bom de papo, desenvolva a arte de ouvir. O resultado pode ser muito compensador. Quer saber por quê? Leia o texto de Cristiane Segatto.

A garota me pergunta qual é a rotina de um jornalista numa grande revista semanal. Aos 18 anos, enfrenta a tensão que antecede as provas do ENEM e de múltiplos vestibulares. Está prestes a encarar a seleção para Direito em várias faculdades, mas acha que leva jeito para Jornalismo. O pai, advogado, não gosta da ideia. Está postergando o pagamento da inscrição para o vestibular da Faculdade Cásper Líbero, uma das principais escolas de comunicação de São Paulo.

Sem querer, sem planejar, a menina teve uma ótima chance de saber algo sobre os bastidores de uma redação. Ela e eu fomos convocadas pela Justiça Eleitoral para trabalhar como mesárias na eleição do último domingo. Passamos dez horas juntas. Lado a lado, numa situação absolutamente informal e solidária.

A garota chegou à seção eleitoral com uma apostila preparatória para as provas do ENEM. Queria aproveitar para estudar nos longos minutos em que não havia eleitor na sala. De tempos em tempos, desviava os olhos do caderno e me fazia uma pergunta sobre jornalismo. 

Como é? Quanto ganha? Trabalho demais? Longas madrugadas de ralação? Autonomia para escolher as pautas? Muito cacique para pouco índio? Glamour? Festas? Gente interessante? 

Tentei responder com clareza e sinceridade. Com o maior interesse, com a maior boa vontade. Não consegui. A cada pergunta, sequer conseguia concluir uma ou duas frases. Começava a falar e já era interrompida. Ela falava sem parar. Daquele embate de vozes resultava um monólogo.  

Senti que a garota saiu daquele encontro do mesmo jeito que entrou. Se fosse jornalista, voltaria à redação com as mãos e a cabeça vazias – apesar de ter estado com o entrevistado durante dez horas. Ela ainda não sabe ouvir. Um erro fatal no jornalismo, em muitas outras profissões, na vida.

Não é a primeira vez que ouço um estudante dizer que pensa em ser jornalista porque gosta de falar. Gostar de falar não é uma habilidade fundamental nesta profissão. Em algumas situações, como no caso dessa estudante, pode até atrapalhar. Para fazer um bom trabalho, um jornalista não precisa ser um encantador de massas, um comunicador nato como Chacrinha.

Precisa, necessariamente, saber ouvir. Os melhores jornalistas que conheço falam pouco. Angustiantemente pouco, em certos casos. Por outro lado, são esplêndidos ouvintes. Ouvem o que o interlocutor diz e principalmente o que ele não diz.

Grandes verdades raramente são verbalizadas. Para revelar o que uma pessoa sente e pensa, de fato, é preciso ser capaz de captar gestos, vacilos, ambientes, a verdade explícita que detalhes (os móveis de uma casa, por exemplo) podem denunciar sobre quem os escolheu.

Em outras profissões não é diferente. Um psicólogo que não sabe ouvir está fadado ao insucesso. Um médico que não ouve se transforma numa ameaça constante à saúde pública. Um professor pode ser condenado a falar eternamente para as paredes. Um advogado, um promotor, um delegado que não sabe ouvir as palavras que não são ditas estará sempre longe da verdade.

Bons ouvintes são raros. Cada vez mais raros. A proliferação dos celulares transformou as cidades em impérios da incontinência verbal. No ônibus, no metrô, nos cinemas, em qualquer ambiente fechado, ouvimos a zoada das vozes que não se encontram.

Alguém dirá que se uma pessoa fala ao aparelho é sinal de que outra a ouve do lado de lá da linha. Não necessariamente. Do outro lado alguém ouve e não escuta. Tem urgência em falar, em vencer o delay que picota a conversa e traz de volta a voz do outro. Aquela voz que precisa ser instantaneamente subjugada.

Em tempos de falação vazia, nos esquecemos de ouvir. Essa é a causa de qualquer parte de nossos desentendimentos. Temos muito que aprender com os grandes ouvintes – sejam eles jornalistas, psicólogos, filósofos, professores, qualquer pessoa que entenda o valor da escuta bem feita. Qualquer pessoa que tenha paciência e interesse genuíno pelo outro.

Saber ouvir é também uma característica das pessoas mais influentes. Pouca gente se dá conta disso. Em geral, acreditamos que líderes são necessariamente aqueles que dispõem de grande capacidade de expressão verbal e poder de convencimento. Uma pesquisa publicada recentemente no Journal of Research in Personality traz um novo ponto de vista.

O pesquisador Daniel Ames da Columbia University, nos Estados Unidos, coletou informações sobre 274 estudantes de MBA da East Coast University. Eram moças e rapazes com idade média de 28 anos.

Colegas de trabalho desses voluntários foram convidados a dar notas sobre o poder de influência de cada. Deram informações sobre a capacidade deles de fazer um colega mudar de ideia, capacidade de conquistar apoios para realizar tarefas, capacidade de trabalhar com pessoas com diferentes opiniões e interesses, capacidade de reverter, a seu favor, a opinião dos presentes em uma reunião etc.

Os participantes também foram avaliados em itens capazes de apontar as habilidades de expressão verbal e de capacidade de ouvir. O que o pesquisador descobriu? Os três achados principais:

Bons ouvintes têm grande poder de influência, independentemente de sua capacidade verbal. Quem sabe ouvir têm acesso às crenças, aos objetivos, aos conhecimentos de seus interlocutores. Isso porque as pessoas revelam informações com mais facilidade quando percebem que o outro tem interesse genuíno por elas.

A escuta bem feita permite que os bons ouvintes entendam o contexto das situações e possam direcionar suas tentativas de persuasão no sentido correto.

Quando as pessoas se sentem ouvidas de forma genuína, elas tendem a apoiar os bons ouvintes nas mais variadas situações, inclusive nos embates do ambiente corporativo. Torço pela garota assustada com o vestibular. Ela tem todo o tempo do mundo para aprender a fazer diferente. Se eu encontrá-la novamente, vou tentar dizer. Espero que ela me ouça.

Saber ouvir não é só uma questão de sobrevivência na profissão. É também um fator que contribui para o bem-estar de quem fala e de quem ouve. Quem ouve e realmente escuta nunca sai de uma conversa do mesmo jeito que entrou. Sai melhor e mais interessante.

BY: CRISTIANE SEGATTO
FONTE: Revista Época 



quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Questionando o discurso "Científico"



Transcrição do depoimento da jornalista Laura Capriglione no debate promovido pelo Centro de Convivência É de Lei, sobre “Mídia, Drogas e HIV” (14/9/2012)


Eu queria agradecer o convite e a oportunidade de estar aqui com vocês. Cabe a mim falar sobre um lado delicado dessa história toda que é o lado da cobertura da imprensa. Eu digo que é um lado delicado porque a imprensa, se por um lado ela joga luzes, ela também pode muito bem, e com a melhor das intenções, reforçar o maior dos preconceitos. (...) Essa cobertura desse evento [a operação na cracolândia] foi pra nós (...) uma experiência extremamente reveladora do que é o universo do crack. Digo isso porque não sei se vocês se lembram quando o crack apareceu, há 20 anos, uma das primeiras matérias que se veiculou foi na Veja, do Elio Gaspari, muito bem escrita como sempre, e a matéria dele começava com um tuiiiimmm, e com esse “tuiiiimmm” a pessoa tava morta, tava frita, “tuiiiimmm” era o suposto “tuiiiimmm” que a droga deflagrava nos sistemas neuronais e aí vinha um linguajar supostamente científico pra dizer exatamente aquilo que o meu colega da mesa mencionou, pra construir a ideia de uma droga que tinha alguns efeitos devastadores, aliás a palavra devastador nunca foi tão utilizada quanto na cobertura do crack, pra dizer o mínimo se diz que o crack é uma experiência devastadora. Mas ele faz muito mais que isso, ele queima os neurônios – tô citando coisas que apareceram na imprensa – ele queima os neurônios, uma tragada vicia inevitavelmente, ele destrói a família, destrói os laços, ele enfim desumaniza a pessoa que deixa de ser um cidadão como nós e passa a ser uma pessoa que precisa de uma intervenção total, e essa intervenção pode ser policial, por que não?, mas pode ser uma internação forçada, compulsória, como a gente ouviu de novo ser mencionado agora na cobertura da cracolândia, essa foi uma das vias que mais acolhimento tiveram... qual a saída? Internação compulsória, isso foi defendido por autoridades, governo do estado...

Pra nós, eu que trabalho na Folha, que é aqui no Centro, quase mergulhada na cracolândia, a gente tem cracolândia de um lado, de outro, na frente e atrás, e pra nós, felizmente ou infelizmente, essa proximidade, quando a gente ouvia as balas, ouvia os tiros, a redação saía, foi muito bom porque a gente tava ali do lado, e a Folha conseguiu flagrar os tiros de bala de borracha, as bombas de efeito moral, isso virou matéria, virou TV Folha, virou um monte de coisa. (...) Isso foi uma experiência muito rica pros profissionais que estavam ali envolvidos. (...) “os craqueiros são pessoas sem o menor discernimento, estão com o cérebro queimado, a droga destruiu qualquer traço de humanidade, generosidade, inteligência”, quem durante muito tempo teve o monopólio da fala sobre os craqueiros foi exatamente a turma dos médicos, a turma dos psiquiatras, a turma das clínicas, essa turma que acabou tendo o monopólio e hoje a gente pode, as pessoas começam a perceber cada vez mais, esse discurso longe de ser científico é um discurso interessado, porque a maior parte dessas pessoas são também donas de clínicas, donas de entidades e são contratadas pelo poder público, são entidades que têm clínicas, convênios com a secretaria da saúde, enfim... só que isso era um pequeno detalhe que passava totalmente despercebido da imprensa, que entrevistava médicos que o tempo inteiro estavam disponíveis pra falar sobre os efeitos devastadores do crack na experiência de um dependente químico.
O que essa experiência da invasão, da disputa do território da cracolândia, fez foi obrigar os jornalistas, que ficaram muito tempo, quase vinte anos, no conforto dessa conversa por telefone na maior parte das vezes, longe da cracolândia, e eu queria só lembrar quantas vezes a gente viu notícias nos jornais, particularmente na televisão, de repórteres muito bem intencionados, por isso eu digo que o problema não foi falta de boas intenções, o problema é um pouquinho maior, tem a ver com preconceito e uma série de coisas, quantas vezes a gente viu aquela cena do carro da imprensa, do carro da televisão, sendo apedrejado pelos craqueiros violentíssimos? A gente viu essa cena um milhão de vezes, um zilhão de vezes, com a melhor das boas intenções. Mas ninguém parou pra se perguntar, só que hoje a gente para pra se perguntar, por isso eu digo que foi um momento que a gente teve de chegar perto do problema, ninguém parou pra se perguntar por que é que aquelas pessoas apedrejavam os carros da imprensa. A maior parte apedrejava os carros da imprensa pelo único e acho que legítimo motivo que essas pessoas têm direito à própria imagem, tem direito a preservar a própria imagem, coisa que não passava pela cabeça de alguém que julgava os caras desumanos demais pra defender a própria imagem, que essas pessoas tinham esse direito. Por que eles tinham de ser expostos, e isso não é uma prerrogativa, diga-se de passagem, de usuários de crack, qualquer população que vive nessas situações limites são pessoas que ficam extremamente constrangidas com essa exposição na mídia. (...) mas essa imagem dos carros de imprensa sendo apedrejados pelos craqueiros era a mão na luva, era perfeito pra provar a tese que os craqueiros eram não-pessoas, eram animais, pior que animais, que a droga tinha desumanizado esses caras e que eles não mereciam nenhuma consideração a não ser uma intervenção total.
Os jornalistas foram pra cracolândia (...), e tomaram um choque com o que viram lá e com as situações que acabaram presenciando. Eu queria dizer que, entre outras coisas, como a gente tava naquela ideia de que alguma coisa precisa ser feita pra salvar essas pessoas de si mesmas, dessa droga que aliena as pessoas de si mesmas, logo no começo parecia que tudo podia, a Secretaria [dizia que] com gentileza não dá pra tratar, e ela não tava falando sozinha, ela tava dialogando com uma ideia que a sociedade tinha dessa população. E vocês podem ter certeza que teve um apoio enorme a essa intervenção da Secretaria, e dentro da Folha, no espaço de comentários (...) era esse mesmo, tira todo mundo, limpa a rua.

Foi muito importante a presença da Defensoria Pública com aquele panfletinho simplíssimo, que falava de direitos, o cara não tem direito de andar na rua, não tem o direito de ficar parado, de sentar na calçada?, parecia uma coisa normal que ele não tivesse... pra se ver o grau de preconceito que tinha, as premissas com que a gente foi pra rua eram as mais nefastas possíveis. Bom, aí teve um jornalista da Folha que saiu andando com os meninos pra medir quanto que esses caras tinham que andar por dia por conta dessas abordagens da polícia e desse impedimento da polícia de que essas pessoas ao menos sentassem. Então se começou a andar junto com as pessoas, começou a conversar com as pessoas, e o que a gente pode ver foi exatamente a desconstrução desses mitos que cercavam os usuários de crack.

Eu tenho certeza que a gente é melhor hoje do que era antes, por incrível que pareça, se essa cobertura, se essa guerra insana que a polícia, que o governo do estado, que a prefeitura moveram, insana mesmo porque a gente vê que os efeitos disso foram simplesmente uma espécie de castigo a essa população que já é tão castigada pela vida, mas um segundo efeito foi aproximar a gente de uma realidade que a gente ignorava solenemente. Porque a gente tava contaminada por esse discurso médico.
Vou dar alguns exemplos, são coisas bestas, bobas, agora recentemente a TV Folha fez uma matéria, a Folha foi atrás de uma velhinha que tava procurando a Desirée, que tava grávida, ela virou personagem porque estava grávida e tava na cracolândia e a sogra dela queria que ela voltasse pra casa porque a Desirée tava ali naquela vida louca. A Desirée é uma das que tá presa, acusada de tráfico, e teve o filho na cadeia. Muito tempo depois, agora, ela teve o filho, ela tá na cadeia, não tá usando crack, tá linda, tá maravilhosa. Fizeram um TV Folha com a Desirée (...), ela tá com o filho e quer continuar com o filho. Quando o pessoal da TV Folha tava editando o material, veio uma menina muito legal e perguntou: Laura, por que vai sair uma matéria dessas agora, pra pegar e mostrar o quê, isso parece novela do SBT, pra que serve essa matéria?

Bom, quando a gente tava fazendo matéria sobre as mães do crack eu fui até os conselhos tutelares, a pauta foi encaminhada com uma única razão, coitadinhas das crianças que são geradas e nascem numa situação como essa. O poder público tem que tirar essas crianças das mães, o objetivo da pauta era esse. Tem que tirar essas crianças dessa situação absurda e tal. Fui lá no conselho tutelar, qual a posição do conselho tutelar? Tira, tira já, tira já! A posição do conselho tutelar daqui, da Praça da República, é tirar já as crianças dessa situação de risco que as crianças não têm nada a ver com a vida da mãe, não sei que. Eu vou falar francamente que achei que não era tão louco isso, não era tão louca essa posição, que de repente podia até ser, e de repente apareceu na minha frente uma mulher dependente de crack, que não era mais dependente de crack, que tava livre, e que disse, olha, eu só saí do crack por causa do meu filho, a minha única ponte com a vida foi meu filho. Se eu perdesse naquela hora o meu filho eu provavelmente não saía nunca mais. Bom, não sei se não saía mais ou não, mas tornou muito mais difícil aquela equação, não podia ser mais simplesmente assim, a mulher tá no crack, arranca o filho dela. O caso da Desirrée, por mais que parecesse uma novela do SBT, mostrava uma outra coisa, que não era uma via de mão única, que precisa ser visto a situação particular de cada uma das mulheres, não pode ser uma norma geral, você tinha que olhar praquele ser humano, não podia ser uma norma tudo que se impusesse pra supostamente salvar a criança. O que começou a acontecer, e é isso que eu queria dizer pra encerrar, aquilo que antes tava tudo muito claro, pra todo jornalista: o craqueiro era um bicho, o filho do craqueiro ou da craqueira tinha que ser arrancado deles, a internação compulsória a gente não gosta muito disso mas também pode mesmo ser a única saída então vamos nessa – pode ser, não é a única saída –, a gente teve de deixar de lado isso pra começar olhar pra cada um daqueles seres humanos sofridos de uma outra maneira.
Eu acho que a gente errou muito e ainda vai errar muito também. Mas eu acho que aquela experiência da cracolândia, às vezes a gente era, junto com a Defensoria, os únicos que estavam ali, pra falar com eles, pra ouvir as reclamações deles, pra flagrar a viatura da polícia passando duas vezes em cima da cabeça dum menino que foi atropelado numa dessas abordagens (...), de fato a gente teve de começar a se relacionar com uma gente que a gente desconhecia completamente. Eu acho que as coberturas de crack tendem a melhorar, tendem a ser menos preconceituosas, mas eu queria dizer também que esse contradiscurso médico em relação a essa posição que é a favor da internação, que só com drogas pesadas... isso aí precisa melhorar muito, essa comunicação precisa melhorar muito, desse outro lado, o outro jeito de lidar com a coisa, porque de novo: os adeptos dessas medidas totais eles estão sempre disponíveis, se você ligar pra eles à meia-noite e meia eles atendem o telefone e falam, olha, os efeitos são devastadores, e fazem aquela cara: de-vas-ta-dores, e tudo bem, e a gente escreve, devastadores... é preciso que o outro discurso seja feito também, que outras experiências sejam mostradas. Por exemplo, esse vídeo aí [mostrado pela Defensoria], com esse cara aí falando, é incrível, se queimou os neurônios desse menino e ele falando desse jeito, eu tô querendo também esse negócio... (risos) eu fui numa clínica que era mantida em São Bernardo que aplica esse princípio dos doze passos e que é de um dos médicos mais disponíveis pra dar entrevista, falando que a única saída é a internação, não sei quê. Bom, aí tinha nessa clínica tratava de dependência de álcool e drogas então tinha álcool e o resto tudo era crack ali. E tava todo mundo sem nada, sem fumar, sem nada, e teve uma mesa-redonda, todo mundo falando... A vivacidade daqueles caras acabou com qualquer ideia que eu tivesse sobre esses efeitos arrasadores, o curto-circuito neuronal, pega fogo no cérebro e aquela coisa toda, acabou, eu vi que a gente precisava aprender tudo de novo sobre crack.

Fonte: Observatório da Imprensa
21/11/2012

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Autismo: Uma muralha de Silêncio




Algumas crianças, logo ao nascer, são cercadas por uma muralha invisível que as impossibilita de interagir com o meio e as pessoas que a rodeiam. Esta muralha, nos primeiros dois anos de vida, contém espaços porosos que permitem aos pais um grau razoável de interação com o bebe. Mas, infelizmente, a cada ano que passa, essa porosidade vai diminuindo e, aos seis anos, na maioria dos casos, a criança está totalmente isolada, dentro da muralha do autismo.

Assim como não há duas crianças idênticas, também não há dois autistas idênticos. Essa diversidade dificulta o diagnóstico precoce, tão fundamental no caminho da cura dessa síndrome. Até mesmo pediatras e psicólogos experientes encontram dificuldades para fazer o diagnóstico, nos primeiros anos de vida do bebe, dependendo do grau do transtorno. Os exames complementares, mesmo os mais sofisticados, como tomografia de crânio ou ressonância magnética, pouco ajudam na conclusão final. É o relato dos pais e, algumas vezes, da escola, que possibilita o diagnóstico clínico.

A falta de tratamento adequado, logo nos primeiros anos, compromete o desenvolvimento cognitivo, emocional e psicológico da criança. Daí a necessidade do diagnóstico nos três primeiros anos de vida da criança, e a necessidade de desenvolver um trabalho interdisciplinar continuado, que ofereça propostas de tratamento e educação especializados. 
 
O diagnóstico clínico considera três critérios básicos. O primeiro aponta a dificuldade ou ausência de interação social – marcada pela incapacidade de estabelecer contato visual, se relacionar com crianças da mesma faixa etária e compartilhar sentimentos. Essa falta de interação muitas vezes dificulta a amamentação. É comum durante o processo de diagnóstico, escutar da mãe que a criança não conseguia sugar o seio.

O segundo critério revela o desenvolvimento tardio da fala – não raro a criança não se comunica verbalmente de nenhuma maneira. A dificuldade de entrar na linguagem produz, desde os primeiros meses de vida, o desinteresse pelo contato visual – preferem olhar para objetos e não para rostos. Não imitam comportamentos, não bocejam, não choram ou riem quando outros fazem na sua frente.

O terceiro critério de diagnóstico revela os movimentos repetitivos e rítmicos do corpo. Elas repetem sempre o mesmo gesto, uma compulsão totalmente desprovida de sentido aparente. Com bastante frequência, acredita-se que se tornou retardada mental e até mesma surda. Não é nada disso. O autismo se fecha progressivamente a qualquer relação humana, por causa, muito provavelmente, do sofrimento insuportável de não se reconhecer diante do outro.

Crianças com quadro de autismo que recebem atendimento precoce - clínico e educacional especializado - apresentam melhoras significativas, desenvolvem a linguagem, integram-se ao meio ambiente, frequentam escolas e, quando adultas, perdem grande parte das características de autista, conseguindo, então, se integrar socialmente.

O fundamental na síndrome autista é que o tratamento inicie antes dos primeiros três anos. É durante esse período que se pode cogitar um processo de cura.
Maria Holthausen