quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

GENDERLESS



Ainda pouco reconhecida além das fronteiras da arte, a cultura Genderless  aparece no cenário contemporâneo como forte tendência de comportamento. Nela “as diferenças sociais, visuais e atitudinais se fundem na medida em que ambos os sexos ocupam papéis igualmente relevantes no mercado de trabalho e na sociedade. As mulheres assumem características mais viris e agressivas, os homens se tornam mais afetivos e menos preocupados com o escudo do macho alfa. Na busca natural por igualdade, os dois gêneros aparecem como protagonistas na gestão da casa e também assumem a mesma postura no trabalho e no dia a dia. É natural que se tornem física e atitudinalmente mais semelhantes”.

Na trilha dos movimentos que deram inicio a desconstrução de papéis sociais e gênero sexual no século passado, a cultura genderless apresenta-se à sociedade dentro de um novo formato. Ela não chega armada dos discursos populistas dos antigos movimentos políticos, nem das fortes bases conceituais dos movimentos ideológicos. Seu espaço de atuação vem sendo sustentado pelos movimentos estéticos.

Cinema, teatro, artes plásticas, dança, literatura, moda e design são espaços construídos por discursos que, num movimento constante, interrogam e recriam os saberes estabelecidos.  Quem não se lembra da desconstrução de gênero sexual provocada pelos filmes de Almodovar? Dentro de uma nova perspectiva, mais ainda sobre a mesma questão, o filme Tomboy, continua a nos fazer pensar sobre essas tramas simbólicas que transformamos em carne.

A expectativa de que nos comportemos de certa maneira: como homem ou como mulher. Que nos vestimos de um jeito específico. Que se construa uma família segundo ao modelo estabelecido. Que sejamos mais agressivo ou mais sensível, em função do sexo. Vem perdendo espaço para um novo modo de vida. Nele, cada pessoa, independente do sexo, vai ter que aprender a lidar com todas as suas características humanas, sem negar ou excluir nenhuma parte de si.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Carta do Pai



Carta de Toninho Cerezo para sua filha Léa T.


“Qual pai um dia não pensou desta maneira? Como seria bom se existisse um manual completo, que ensinasse e orientasse como ser pai em todas as etapas da vida dos filhos!

Por mais que existam livros, manuais, conselhos bem-intencionados, a grande verdade é que exercer a paternidade vai muito além de conselhos e teorias. Todos sabem que cabe à paternidade uma parcela da responsabilidade de cuidar, educar, proteger e preparar os filhos para o ingresso na sociedade. Mas a alma humana é muito complexa, e estamos bem longe de saber tudo o que esse ser mutante chamado Homem é capaz de fazer, querer e ser…

Meu menino, minha menina pra sempre, eternamente, os dois serão meus.

Ainda no ventre, Leandro foi um filho esperado e amado. Na sua infância, seu sorriso doce e os cabelos cacheados não me indicavam qualquer tendência, era apenas uma criança, era apenas meu filho. Com o passar dos anos e a chegada da adolescência, conheci, na intimidade e nos momentos que passamos juntos, seu jeito diferente — a clara ausência de predileção por brincadeiras masculinas. Percebi interesse por assuntos ligados à arte e ao universo feminino.

Por conta da minha formação familiar ter sido baseada em respeito, cresci em um ambiente livre e pude escolher jogar futebol e viver apenas com meus dons no campo. Como não tive o tão sonhado manual, “Como Criar Filhos”, criei os meus igualmente livres também para suas escolhas, sem cobranças nem imposições. Apesar de notar as diferenças, percebi também que nada poderia fazer, e tudo o que poderia dar a ela/ele era o meu amor incondicional, a segurança, o conforto e a certeza de que, em qualquer circunstância, por mais que longe, eu estaria sempre ao seu lado.

Em alguma entrevista, Lea disse que a única coisa que gostaria de ter aprendido no futebol eram as embaixadinhas (veja só!), e que até tentou aprender, mas não foi muito bem-sucedida. Sei que trabalho em um ambiente teoricamente machista, mas nunca houve influência nem espaço para cobranças, apenas dei oportunidade de estar comigo caso quisesse.

Pode ser que eu tenha sido negligente como pai, mas não há motivos para frustrações. Não podemos ser bons em tudo. E você, Lea T. Cerezo, sabe muito mais que embaixadinhas. Teve coragem de, elegantemente, tentar quebrar paradigmas e mostrar ao mundo que devemos aceitar, sim, as diferenças, ser tolerantes com a diversidade, entender e não julgar aquilo que não conhecemos.

O caminho pode ser longo, mas com certeza não será o mesmo depois de você. A paternidade é livre de qualquer padrão, de qualquer critério imposto pela sociedade, filho deve ser aceito na sua totalidade, na sua integral condição de vida, independentemente de sua orientação sexual.

Como diria o poeta Cazuza, “O tempo não para, não para, não, não para”, e filho crescido não cabe mais aos pais educar. Sendo assim, aqui ou lá, torço por você, Lea. Menino ou menina, Leandro ou Lea, não importa mais, sempre serei seu pai e você, orgulhosamente, um pedaço de mim.”



Fonte: Site revista Lola.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

ABC da Violência



Algumas vezes, a violência contra a mulher começa muito cedo, ainda no período de namoro. A tendência é que quando a magia da paixão se extingue, inicie o amor. No entanto, em certos casos, não é o amor que toma o lugar da paixão, mas a dependência.

A princípio a dependência é encantadora: “Ele não faz nada sozinho.” – reclama a garota com um brilho de satisfação nos olhos. “Ele me controla o tempo todo.“ “Ele briga comigo, diz que não dá para continuar, mas no dia seguinte me liga desesperado pedindo para volta.” Essas são as pequenas queixas que indicam o processo da dependência.

Alguns outros “maus comportamentos” do namorado dependente nem são mencionados, já que eles despertam vergonha, pois indicam claramente o quanto a dependência pode ser opressiva. Entre eles, podemos suspeitar das pequenas agressões físicas: beliscar, empurrar, arranhar. Do ciúme possessivo: não deixa a namorada sair sozinha, nem com as amigas. Controla todos os movimentos dela, pergunta constantemente onde esteve e com quem esteve. Quer saber de todos os detalhes e questiona todas as decisões tomadas por ela. Esse interrogatório, é claro, funciona na lógica da tortura: Cada resposta que ela dá é questionada, criando uma incerteza que é interpretada, por ele, como falta de consistência. E, portanto, como possível mentira.

Já que ela não sabe o que quer, ele começa a tomar todas as decisões e a não valorizar as opiniões dela. Essa falta de valorização leva, muito facilmente, a humilhação. Ele começa a fazer comentários depreciativos dela na frente dos amigos. Às vezes, num tom de “brincadeira”: Piadinhas e comparações negativas. Se ela retruca o comentário, ele responde que ela não tem humor, não sabe brincar.

Se ela enfrenta as certezas dele, ele se torna violento. Assustada, na maioria das vezes, ela recua com medo da agressividade. Ainda assim, ela será culpada pela reação violenta dele. Com frequência, nestes momentos de muita raiva, ele diz que vai embora. Que quer terminar a relação. Se ela permite, no dia seguinte ele volta pedindo desculpas e prometendo mudanças. Se ela aceita as desculpas, inicia-se uma “fase de lua de mel”. Ele se torna uma pessoa amorosa e cordata, tudo o que ela sonhava. Mas, isso não dura muito tempo. Logo em seguida todo o processo de degradação da parceira volta a predominar no comportamento dele.

A dependência se parece com amor, mas não é amor. Imagine um dependente de droga. Ele precisa dela para continuar vivendo. Ele é capaz de fazer muitas “loucuras” para consegui-la, mas ele não a ama. Não é algo sobre o qual ele fala com prazer e orgulho. Na verdade, a dependência é um processo tão tirânico que a maioria das pessoas não admite que sejam dependentes. A dependência transforma o “eu” em objeto de uma vontade sobre a qual o sujeito não tem nenhum controle. E isso gera muita frustração, muita raiva.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A virada dos anos 60: Uma nova feminilidade



Até a década de 50, do século passado, o código moral ocidental dividiu as mulheres em dois grupos: as “santas” e as “vagabundas”. Hollywood representou essa dualidade em maravilhosas personagens que transcenderam as telas.

Marilyn Monroe interpretou no cinema, e na vida real, a loura fatal. Embora suas personagens na ficção cinematográfica mais insinuassem do que vivessem a sexualidade, na mídia foi constantemente promovida como “A” mulher fatal. Marilyn representava o papel da mulher devoradora de homens, que nenhuma esposa gostaria de ver perto de seu marido. Amiguinha de políticos influentes, a loura era desejada por todos os homens, mas nenhum filho pensaria em apresentar a sua mãe uma namorada com aquele perfil.

O perfil da “mulher santa” e boazinha, ideal para levar ao altar, também ganhou suas musas. Grace Kelly e Doris Day interpretaram com maestria esse tipo de mulher. Grace Kelly, com sua majestosa beleza, teve a chance de mostrar o quanto a vida pode ser boa e feliz para as mulheres lindas e boazinhas. O seu casamento real, em Mônaco, foi um verdadeiro conto de fadas, que mesmo a morte trágica da atriz não conseguiu apagar.

Já Doris Day representava a esposa que todo homem gostaria de ter. Não tão bonita quanto às duas primeiras, fazia o tipo engraçada, compreensiva e meio bobinha. Usava avental, mas mantinha-se sempre elegante. Seu guarda roupa era bem básico, nada parecido com os de Grace Kelly, claro. Afinal, uma boa esposa da classe média não deveria gastar o dinheiro do marido com excesso de luxo. Boas esposas deveriam ser econômicas.

Imagem cultuada da moral da boa moça, as personagens de Doris mantinham a virgindade como regra fundamental. Os homens poderiam perdoar os caprichos, a falta de beleza e de conhecimento das suas futuras esposas, mas jamais, em hipótese alguma, a falta da virgindade. Para se casar, uma moça tinha que ser virgem. O mantra que toda a mãe repetia insistentemente para as suas filhas era: “Se for até o fim, não tem volta. Nunca”.

Na década seguinte, anos 60, esses valores começam a mudar. A dualidade se desfaz, entram em cena novos perfis de conduta feminina. Nas telas de Hollywood essa mudança foi muito bem representada pela personagem Holly Golightly, vivida por Audrey Heprburn, no filme Bonequinha de Luxo. Holly transgredia todas as boas regras moral, mas Holly não era uma vagabunda, era uma excêntrica.

Ela fazia o que queria e dizia o que queria. A independência era a força central de sua vida. Seu verdadeiro desejo. Aqui é preciso fazer uma ressalva para lembrar que a Holly original, independente e extremamente avançada para sua época, é a personagem de Truman Capote, cujo livro Bonequinha de Luxo, foi adaptado para o cinema.

Mas, mesmo com as pinceladas de doçura acrescentada pelo roteiro do filme, Holly, com seu pretinho básico, representou uma nova imagem do feminino. Ela criou um novo perfil moral para as mulheres. Nesse novo perfil, morar sozinha, sair, andar linda e ficar um pouco bêbada não era mais tão ruim.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Homem ou Mulher?


Há três anos, Laerte, 60, cartunista da Folha, usa roupas femininas e maquiagem em seu dia a dia. Na terça retrasada, pelo protesto de uma cliente que o reconheceu como Laerte (e, portanto, como homem), ele foi proibido de ter acesso ao banheiro feminino de uma pizzaria paulistana.

Quem está certo, Laerte ou a cliente que protestou? A questão é, no mínimo, complexa.

Em regra, na nossa cultura, na hora de usar um banheiro público, a gente se divide em HOMENS e MULHERES. Por quê? Perguntei ao meu redor e obtive dois tipos de respostas.

1) Na hora em que nos dedicamos a funções que são naturais, mas das quais nos envergonhamos, é mais confortável saber que não seremos objetos de desejo sexual.

Problema: segundo esse princípio, os homossexuais masculinos deveriam frequentar os banheiros femininos e vice-versa. E os bissexuais fariam xixi em qual banheiro?

2) A divisão dos banheiros públicos não teria a ver com o sexo, mas com o gênero. Seja qual for o objeto de nosso desejo, na hora de exercer as funções excretórias, preferiríamos estar entre pessoas com uma anatomia igual à nossa. Nesse caso, Laerte, que só se veste de mulher, não poderia usar o banheiro feminino.

Problema: o que aconteceria com um(a) travesti ou com um(a) transexual, ou seja, com alguém que transforma seu corpo até encarnar o gênero oposto? Yasmin Lee, Lea T ou um transexual de mulher para homem iriam para qual banheiro?

Simplificando ao máximo, na esperança de esclarecer:

"Cross-dresser" é quem gosta de se vestir com roupas do outro sexo - ocasionalmente ou, como Laerte, o tempo inteiro. Isso não implica uma preferência sexual específica. Muitos "cross-dressers" masculinos desejam só mulheres. Outros se mantêm castos, porque seu único prazer está no fato de habitar, por assim dizer, a pele do outro gênero.

"Travesti" implica uma transformação do corpo (hormônios, implantes) e a presença de uma fantasia sexual, que é diferente para cada um, mas na qual a "ambiguidade" do travesti funciona como um fetiche (para ele mesmo e para os outros).

Ser "transgênero" ou "transexual" significa ter a clara sensação de que seu corpo é inconciliável com seu sentimento profundo de identidade: você nasceu num corpo errado, que você odeia, sobretudo a partir da puberdade, quando ele desenvolve seus atributos de gênero. Os primeiros capítulos do livro de João Nery, "Viagem Solitária, Memórias de um Transexual 30 Anos Depois" (Leya), são perfeitos para entender o drama de quem descobre que ele discorda de seu próprio corpo.

A condição de transexual é independente de orientação ou preferência sexuais. Posso nascer num corpo de mulher e desejar homens, mas viver esse corpo como uma prisão e querer (ou melhor, precisar) me tornar homem; mudando de gênero, continuarei desejando homens. No fim, nascido mulher, eu me tornarei homem homossexual. Só para atrapalhar: qual banheiro frequentarei?

Na realidade complexa (e confusa) de sexo, gênero e orientação sexual, as categorias que descrevi se misturam e não designam destinos - ainda menos destinos claramente reconhecíveis desde a infância.

No lindo, delicado (e imperdível) filme de Céline Sciamma, "Tomboy" (maria-rapaz), a jovem Laura (extraordinária Zoé Héran) se vale de sua bonita figura andrógina (a puberdade ainda não chegou) para passar por menino entre seus novos amigos.

No fim, o espectador decide: o que foi que a gente viu? O começo de um mal-estar transexual? O nascimento de uma homossexualidade? Ou apenas a brincadeira de um verão, que permanecerá como uma lembrança divertida num futuro heterossexual e sem incertezas? Não sabemos e, de fato, nada permite dizer.

Aos nove anos, a menina que seria João Nery foi levada a uma terapeuta. A razão era que ela agia e pensava como um menino, e a mãe gostaria que lhe explicassem o porquê dessa conduta e lhe dissessem como ela deveria se comportar diante disso.

Nery escreve: "O diagnóstico indicou que era fixado no meu pai, com uma necessidade de imitá-lo por ser a filha do meio. Assim, tentava me sobressair para ter mais atenção e afeto. Minha mãe não deveria me forçar, impingindo-me roupas femininas ou coisas do gênero, pois tudo passaria com a idade".

Com a idade, nada passou. A terapeuta se enganou? Não exatamente: ela não tinha mesmo como saber.

Cortado Calligaris – Folha de São Paulo – 02/02/2012