domingo, 29 de julho de 2012

Família e Responsabilidade Ética



Já não temos um modelo ideal de casamento, porém ainda temos casamentos. Houve uma época em o modelo ideal era tão consistente que abarcava com seus mitos o vazio e as frustrações entre dois seres. Na época em que o casamento era uma união indissolúvel, por exemplo, a dificuldade da convivência era a consequência de uma escolha com a qual tínhamos que nos responsabilizar.

O mundo anterior do qual estamos nos despedindo, organizava as relações sociais em torno de símbolos maiores: o pai, na família; o chefe, na empresa; e a pátria, na sociedade civil. Medíamos nossa satisfação pela proximidade que conseguíamos do ideal proposto, em cada lugar que ocupávamos ao longo da vida. Para isso seguíamos uma disciplina estabelecida em protocolos e procedimentos. Como o mundo era padronizado, o futuro podia ser previsto. Os pais tinham muito mais segurança na herança moral que transmitiam aos filhos.

Uma vez perdida essas figuras típicas do passado, restam, nas relações afetivas, famílias sem modelos. As familiais contemporâneas ficam órfãs dos seus ideais, reduzindo-se unicamente as contingências do desejo de cada um. Tudo é simultâneo, ou na ordem das preferências pessoais. Pode-se ter filhos aos vinte ou aos quarenta anos. Casar-se quantas vezes quiser, e ter filhos de vários casamentos. As relações homoafetivas adquirem o estatuto de relação estável. Hoje, muitas crianças são criadas por dois “pais” ou “duas mães”. Ou então, por vários pais e mães que vão se sobrepondo um ao outro nas diversas relações do casal. Ou ainda, somente o pai ou somente a mãe.

Porém, não importa como seja constituída a família: por cama, ou proveta; hetero ou homossexual; parceira ou monoparental. A família é a instituição humana que tem a capacidade de fazer com que nos confrontemos com a nossa história singular. É por entre essas relações parentais que construímos nossos desejos mais primários. É dela que recebemos nossa herança genética, cultural e afetiva.

Portanto, mesmo sem um modelo ideal, a família continua com o dever de assumir a responsabilidade ética dessa herança.

Maria Holthausen

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Amamos o que Criamos




Temos usado a expressão “Zona de Conforto” como um conceito valise. Isto é, um tipo de conceito que empregamos nas mais diversas análises comportamentais. Fala-se em zona de conforto profissional, afetiva, intelectual e assim por diante. Sempre que queremos discorrer sobre o comodismo, a falta de iniciativa, o medo de trilhar novos caminhos e o medo de fazer novas escolhas; falamos da dificuldade de sair de uma Zona de Conforto.

Embora seja um perigo usar o mesmo conceito para fazer análise de situações tão diferentes, a noção de “Zona de Conforto” forma uma imagem tão interessante e esclarecedora, que é difícil fugir dela. Por isso, vou usar esse conceito como ponto de partida de uma situação comum aos relacionamentos. Qual seja: a dificuldade para desconstruir a idealização que fizemos da pessoa amada.

A paixão, como qualquer outro sentimento intenso, gera medo. Temos medo do ardor de nosso afeto por uma pessoa que acaba de entrar na nossa vida. Uma pessoa que, até há pouco tempo, era um ilustre desconhecido. Para nos protegermos do medo, começamos a criar uma série de idealizações sobre aquela pessoa. Essas idealizações tem o poder de criar um novo personagem. É como se criássemos um avatar. Não amamos o Pedro, a Maria, o Carlos ou a Matilde; amamos um avatar idealizado dessas pessoas.

Apaixonamo-nos por um ideal criado por nossas próprias fantasias românticas e eróticas. Essa construção psíquica funciona como uma Zona de Conforto. Já que não temos que olhar para a figura amada, como alguém muito diferente de nós mesmos. Afinal, “narciso acha feio tudo o que não é espelho”. E o amor circula no registro do narcisismo.

Assim, quando olhamos para nosso parceiro, vemos a nós mesmos. Vemos o nosso ideal romântico projetado no outro. Essa projeção, que de início nos protege das dificuldades de viver com um estranho, com a convivência diária, vai entrando em conflito. Aí começam as brigas, as queixas e as insatisfações. – Ele, ou ela, não era aquilo que eu pensei, que eu imaginei um dia. Claro que não era.  Não era, não foi e não será.

A desconstrução desse ideal, por um lado, acaba com nossa Zona de Conforto. O que, na maioria das vezes, gera muita decepção. Mas por outro lado, é a chance de aprender a amar a alguém diferente de nós mesmos. Um amor que se sustenta na diferença, e não no espelhamento.

Dá mais trabalho. Mas é um aprendizado importante e enriquecedor.

Maria Holthausen

sábado, 14 de julho de 2012

Uma Cortina de Fumaça




No texto da semana passada, apontamos para dois diferentes modos de vivenciar a sexualidade entre parceiros. O da libido masculina, que é sustentado pela erotização de imagens de diversas figuras femininas. E o da libido feminina, que se sustenta no ideal amoroso projetado no parceiro. Acreditamos que para muitos casais, a consciência dessa diferença pode provocar mudanças e trazer mais satisfação aos pares.

Entretanto, é preciso admitir que, em alguns casos, as inibições sexuais causam dificuldades que não podem ser tão facilmente resolvidas. A gênese dessas inibições não está no relacionamento, mas na construção subjetiva de cada parceiro. E, infelizmente, é a mulher que tem menos facilidade em admitir suas inibições sexuais.

É mais fácil para a mulher esconder-se sobre o manto protetor da figura materna - um lugar que exige muita dedicação e muito pouca erotização - e esquecer-se do seu papel de parceira sexual na vida do homem. Quem irá culpar uma mulher por ser uma mãe dedicada?  Ninguém! Na verdade, quando estamos em frente a uma mãe muito dedicada só podemos fazer elogios. 

Quanto aos seus outros papeis, o da esposa, amante e namorada do pai de seus filhos; só podemos observar em silêncio. Sobre esses outros lugares que a mulher-mãe continua a ocupar, só temos o direito de dar opinião ou de levantar alguma questão com a autorização dela. Essa proteção da intimidade afetiva-sexual, tão comum ao mundo feminino, é um grande obstáculo para o enfrentamento das dificuldades sexuais.

Mesmo com todas as conquistas adquiridas, falar sobre a sexualidade ainda é um tabu para as mulheres. Não é a toa que as conversas francas, sobre a sexualidade, divididas entre as amigas no seriado Sex and the City, foi interpretada por muita gente como um comportamento perverso das personagens. A sexualidade ainda é um tema masculino.

As mulheres fazem sexo, mas não falam sobre isso. O que é uma pena. Pois, chega um tempo em que o marido cansa de reclamar e vai procurar sua satisfação em outro lugar. As amigas, que não sabem de nada, não podem ajudar. Os filhos, que já estão crescidos, não costumam saber como auxiliar. Nesses momentos, a mulher se sente muito sozinha. Muito abandonada. Poucas conseguem juntar forças para procurar uma solução para suas dificuldades. Acabam passando pela vida adulta, usufruindo muito pouco dos prazeres que a sexualidade pode lhes oferecer.

sábado, 7 de julho de 2012

As fantasias sustentam o desejo




É comum ouvir os maridos reclamarem da falta de desejo sexual de suas esposas. Penso que, para alguns homens, essa queixa é uma estratégia para manter a fantasia fálica. Ele atribui à esposa a responsabilidade pelos fracassos de seu próprio desejo. Como a culpa é dela, ele pode continuar pensando que ainda possui o mesmo vigor e desejo da juventude. Um pequeno engodo que faz muito bem ao narcisismo masculino.

Contudo, na maioria dos casos, essa queixa expressa as diferentes trilhas percorridas pela libido masculina e feminina depois do casamento. Para o homem, o desejo tem o direito de continuar livre, leve e solto depois da troca de alianças. Ele pode continuar desejando, seduzindo e fantasiando com outras mulheres. Mesmo quando ele é fiel, quando esses comportamentos são usados, apenas, para manter as fantasias libidinais que sustentam o desejo.
 
Para um grande número de mulheres, a libido, depois do casamento, percorre um caminho muito mais árido. A sociedade cobra delas, assim como elas cobram de si mesmas, que todas as suas fantasias eróticas tenham como personagem central o marido. É muito difícil encontrar numa roda de amigos, uma mulher casada fazendo jogos de sedução com os parceiros que a rodeiam.

Essa trilha de mão única, que percorre a libido feminina depois do casamento, pode ser algo que o homem espera que aconteça.  Mas nem sempre ele sabe o que fazer com isso.

Por ter menos fantasias eróticas, a mulher necessita de mais contato físico para se sentir erotizada. Ela precisa ser seduzida com olhares, carinhos, beijos e palavras românticas. Necessidades que os homens teimam em não reconhecer. Afinal, isso dá trabalho, exige tempo de dedicação e coragem para mudar certas atitudes que não correspondem às expectativas da parceira.

Acredito que para muitos casais, a consciência dessa diferença e a mudança de atitude masculina resolveriam grande parte das queixas. Mas, para eles, é bem mais fácil continuar com o mesmo padrão de comportamento e, depois, reclamar da falta da libido feminina. Ou pior, dizer que é ela – a esposa – que tem problemas com a sua sexualidade. Culpa que muitas mulheres carregam a vida toda. Principalmente aquelas que tiveram poucas experiências sexuais antes do casamento.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

O Mistério Feminino



Capitu nasceu no final do século XIX. É inteligente, bonita e esperta. Uma garota humilde, mas avançada e independente, muito diferente da mulher vista como modelo pela sociedade patriarcal daquela época. Como uma das principais personagens da nossa literatura, Capitu será eterna. Assim como serão eternas as discussões de um dos temas preferidos dessa trama machadiana: Capitu traiu ou não seu marido Bento Santiago, o Bentinho?

Na época de seu lançamento o romance era visto como o relato inquestionável de uma situação de adultério, do ponto de vista do marido traído. Afinal, é o marido, Bentinho, o narrador da história. É sob o olhar desse homem apaixonado que a trama se desenrola.  

Depois dos anos 1960, quando questões relativas aos direitos da mulher assumiram importância maior em todo o mundo, surgiram interpretações que indicavam outra possibilidade: a de que a narrativa pudesse ser expressão de um ciúme doentio, que cega o narrador e o faz conceber uma situação imaginária de traição.

No entanto, mesmo sobre a perspectiva de novos valores, a dúvida continua.  Esta persistente incógnita nos provoca a olhar com mais atenção para a construção psicológica dessa personagem. E então, nos deparamos com uma característica fundamental dessa mulher: Capitu é uma mulher misteriosa, enigmática, inexplicável. Seu comportamento, suas atitudes e suas falas quase sempre não nos permitem entrever sua interioridade. Aquilo que ela pensa permanece recluso dentro dela, e podemos apenas fazer suposições a respeito.

A complexidade dessa personagem. Seus mistérios.  A falta de transparência mantém a eterna dúvida sobre a sua possível traição. O que quer essa mulher? – podemos perguntar. Betinho não sabia, assim como nós continuamos a não saber. Ela era capaz de trair? Era. Ela traiu? Nunca vamos saber.

O enigma feminino é algo que perturba profundamente os homens. Freud foi um dos primeiros a confessar. Em um mundo em que a transparência é a lei, o mistério causa angústia. Superfícies transparentes acalmam, as opacas exigem mais cuidados e atenção. É mais fácil à convivência com mulheres com estruturas psíquicas simples. Seus interesses e valores mudam muito pouco ao longo da vida. Podem dizer tudo o que pensam, porque pensam muito pouco. Como discos furados, repetem sempre o mesmo discurso. Dificilmente saem da zona de conforto que constroem em torno de si.

Por outro lado, as “Capitus” jamais se revelaram por inteiro. Por não terem uma visão maniqueísta da vida, o mistério e o enigma fazem parte de seu modo de ser. Por isso mesmo, exigem muito mais atenção e coragem de seus parceiros. Homens sem coragem e sem interesse por esse tipo de mulher costumam chamá-las de dissimuladas. Um valor moral negativo, que esconde o medo de ser surpreendido pelo Outro.