quarta-feira, 16 de abril de 2014

Amor: Que não seja imortal, posto que é chama...


Como se conserta um coração partido?

As dores de cotovelo talvez sejam o motivo mais comum de sofrimento humano. Aqui, na China, em toda parte. Sobretudo entre os jovens. Não transcorre um segundo neste planeta azul sem que um coração seja partido, com terríveis consequências pessoais. Quem sofre não consegue trabalhar, dormir ou comer direito. É uma catástrofe íntima que só a vitima é capaz de dimensionar.

Numa entrevista recente, o Paulo Coelho disse ter pesquisado entre seus milhões de seguidores na internet as causas mais comuns da depressão. Sua conclusão? Traição. Eu, arrogantemente, me arrisco a reinterpretar o resultado da pesquisa do escritor famoso. Não é traição. É desilusão amorosa a causa de tristeza e depressões. As pessoas frequentemente confundem as duas coisas.

A moça foi deixada pelo rapaz e sente-se traída por ele. Um rapaz foi trocado por outro e diz para si mesmo que foi traído pela namorada. Mas foi mesmo? Talvez em alguns casos ocorra um ato tão pérfido que mereça o uso da palavra “traição”. Mas, na maior parte das vezes, as pessoas sentem-se traídas porque foram abandonadas, porque deixaram de ser amadas, porque aquilo que gostariam que existisse não existe mais. Acusar de traição deve ser mais fácil do que gemer no escuro sem ter a quem incriminar. Ou assim me parece.

Qualquer que sejam suas origens, não há dúvida de que a dor de cotovelo é um problema universal. Tanto é verdade que os americanos, que são gente prática, estão tentando entender cientificamente o processo, para melhor superá-lo. Uma pesquisa feita em duas universidades concluiu, faz alguns dias, que a melhor maneira de remendar um coração partido é envolver-se com outra pessoa, rapidamente.

Os pesquisadores compararam gente que buscou consolo nos braços de um novo parceiro com gente que escolheu sofrer sozinha as dores da separação. Concluíram que quem se enfiou na cama de alguém se sentiu melhor do que quem ficou sozinho, chorando no sofá. A auto-estima estava mais alta e eles se mostravam mais seguros ao lidar com os ex-parceiros. Os americanos chamam esses namoros para esquecer o ex de “relacionamento rebote” - e a opinião dos cientistas é que eles, efetivamente, ajudam a superar o passado.

Vocês acreditam nisso? Eu não. Por meia dúzia de razões importantes.

A primeira é que nunca – repito NUNCA – vi ninguém levar o fora num relacionamento importante e ficar feliz com outra pessoa na sequência. Já vi gente tentando, mas nunca vi funcionar. Pelo contrário. As pessoas que fazem isso se atrapalham, machucam os outros e a cabeça delas fica um lixo. Continuam sofrendo, claro, miseravelmente. Essa é a regra quando se gosta muito.

Quando não se gosta tanto assim, ou quando não se gosta mais, fica mais fácil. Aí basta uma cara nova, um corpo novo, para ajudar a remendar a autoestima avariada. Mas quem esteve apaixonado de verdade não supera um pé na bunda assim na boa. Por um motivo essencial: quem parte fica dentro de nós. Por algum tempo, inevitavelmente, estará lá. Vai morar nos nossos sonhos e dividir conosco as horas do dia. É uma ausência enorme, maior do que a pessoa de verdade. Mesmo que ela não mereça, mesmo que não seja assim uma coca-cola. Mesmo assim.

Quem vive esse pequeno inferno gostaria que fosse diferente. Se fosse possível arrumar um namoro de consolo e deixar os sentimentos de abandono para trás seria perfeito. Mas como se troca um João por um Rodrigo de uma hora para outra? Eles falam de maneira diferente, pensam de forma diferente, agem cada um do seu jeito. Como se substitui uma Maria por uma Rosana? Seus sorrisos são tão diferentes, elas não têm os mesmos sentimentos, reagem de forma distinta diante da chuva, do sol, da cena besta do filme. Não dá.
Nossos sentimentos não são genéricos. Eles se aplicam a uma única pessoa de cada vez. São como roupas feitas sob medida, cortadas milimetricamente. A cada novo amor temos de começar do zero, fazer de novo. Afinal, é um sentimento novo em folha, que serve apenas àquele ser humano que nos inspira. Ele tem nossa cara e nosso estilo (é o nosso jeito de amar, naturalmente), mas tem as formas e as medidas de quem nos toca o coração. Uma coisa dessas não se improvisa. Tampouco desaparece em dois dias.

Se os pesquisadores americanos dissessem que depois de um rompimento é bom se distrair, eu concordaria entusiasticamente.

Encontrar os amigos, sair de casa, conhecer outras pessoas. Isso tudo faz bem, porque não mexe com sentimentos profundos. Quando se está assim, na merda, é bom perceber que outras pessoas se interessam pela gente. É bom sentir que somos capazes de perceber gente interessante. Mas, por favor, devagar com o andor. Conhecer, conversar, rir, flertar um bocadinho, tudo bem. Essas coisas distraem e atenuam a dor. Mas, no primeiro beijo na boca, na primeira vez que a mão percorre o outro corpo, desastre: lá vêem as lembranças, começam as comparações, surge aquela avalanche de sentimentos depressivos e o caos se instala dentro de nós. Melhor evitar, eu acho. Melhor ficar no flerte e na conversa. Eles não machucam e ajudam a cicatrizar. Também não queimam seu filme com aquele ser humano ali ao lado, que pode vir a ser importante quando essa crise passar. Pense nisso.

Texto de Ivan Martins
Fonte: Site Revista Época


sábado, 5 de abril de 2014

Ainda queremos casar.




Casamento, a perversão consentida.

A tradição liberal tende a definir o casamento como um contrato realizado entre duas pessoas, no livre exercício de sua liberdade e faculdades mentais. Um contrato que inscreve os envolvidos em um discurso, por meio do qual o Estado reconhece tal união, prescrevendo, a partir daí, direitos e deveres ligados à descendência e à herança do casal. No direito canônico e para a maior parte dos ritos cristãos da Antiguidade o casamento era apenas uma forma de reconhecimento de um laço entre pessoas. Os nubentes se casam, o padre, o juiz ou correlatos apenas testemunham, divulgam ou celebram. 

Hoje, assim como há uma força que pressiona rumo à ampliação das modalidades de casamento, há outra que tende a reduzir a importância do contrato. Na experiência clínica são cada vez mais frequentes situações de casais que vivem juntos e que se consideram casados, até que um filho, uma herança ou um plano de saúde os separem. Sentimos que o contrato informal e íntimo é a essência de uma relação amorosa e que tal ligação deve perdurar por seus próprios motivos. O combinado, neste caso, acrescenta um incômodo signo de inautenticidade ao que é, afinal e antes de tudo, um pacto de amor entre dois. Mas, como pensam outros tantos, uma relação que não tem estatuto de lei é uma forma de amor acanhada e incompleta. Como um namoro secreto que entre quatro paredes ganha tórrida intensidade, mas que fora dali parece feito de mentira e destituído de realidade. Os dois lados parecem ter suas razões: o verdadeiro amor é livre, somente se, livremente, renunciar a sua liberdade. 

Foi Immanuel Kant, um célebre celibatário, quem observou a natureza problemática do enlace ao perguntar: “Se o casamento é um contrato, que tipo de lei realiza?”. A resposta é que se trataria de uma espécie de confusão consentida entre uma lei condicionada à propriedade, que regula a relação entre pessoas e coisas, e a lei de tipo comunitária, que organiza a relação entre pessoas. Isso porque o casamento dispõe sobre certo tipo de uso do corpo do outro (propriedade), assim como sobre uma forma de vida comum, livre e justa (comunalidade). Portanto, o contrato mistura, de modo confuso, mas ainda assim deliberado, duas dimensões que sabemos serem independentes: o sexo e as trocas sociais. O sexo suspende a equidade das trocas sociais, introduz relações de uso, abuso e exclusividade entre quase coisas. Por outro lado, a igualdade jurídica cria uma suspensão das diferenças, distinções e diversidades instituindo a figura de quase pessoas (que ignora as pessoas reais, seus desejos reais e seus gozos inconstantes). Fundamentando o casamento como contrato temos então uma lei baseada em um equívoco, que trata pessoas como coisas e coisas como pessoas, que demanda regulação pelo Estado de um ato privado, que fixa a paixão de ser objeto e eterniza nossa condição de instrumento para o outro. Tudo isso junto e misturado é o que se chama clinicamente de perversão. Conclusão: o casamento é uma perversão consentida. Se Kant tinha razão, nossa crescente covardia diante dessa união como contrato é mais um sinal de nossa normalopatia.

Christian Ingo Lenz Dunker

Fonte: Revista Mente e Cérebro