quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O amor desculpa tudo



Nesse texto, Calligaris ascende à luz do quarto. E quando a claridade envolve todo o espaço, o que se revela é o tabu da sexualidade. Em nome do amor, o sexo é liberado desde a adolescência.  Mas, sem amor, ele ainda é percebido como um pecado ou uma perversão.


 Adorável 'Jovem e Bela'

"Jovem e Bela", de François Ozon, conta uma temporada na vida de uma adolescente: Isabelle, 17 anos, tem seu primeiro namorico de verão e se prostitui no outono e inverno seguintes. Marine Vacth, a atriz, além de jovem e bela, é adoravelmente emburrada, como só os adolescentes franceses conseguem ser.

Aviso aos espectadores: entre ela, o comportamento de seus pais, a classe do colégio discutindo um poema de Rimbaud e a paisagem, o filme pode matar qualquer um de saudade de Paris e da França. Agora, alguns pontos (sem "spoilers").

1) O namorico de Isabelle durante o verão é sinistro, como a maioria dos namoricos de praia entre adolescentes. Isabelle olha para sua primeira transa como uma espectadora que não acredita na miséria do que está acontecendo. Cá entre nós, qualquer coisa é melhor e mais interessante do que aquilo --talvez até se prostituir num estacionamento.

2) Durante esse verão, Isabelle se irrita quando a mãe manifesta uma curiosidade bestamente cúmplice: cadê aquele jovem alemão bonito? Os pais adoram que os namoradinhos se incorporem ao cotidiano da família: eles esperam que o lar acabe domesticando o desejo sexual das filhas.

Mais tarde, no filme, Isabelle não aguenta a visão de seu novo namorado de pijama na mesa de família. Para completar, o namorado vai jogar videogame com o irmãozinho de Isabelle. Essa prática nefasta é frequente; conselho: meus amigos, decidam-se, cresçam ou caiam fora, joguem com o irmão ou namorem com a irmã.

Com a desculpa de que a rua de noite é insegura, os pais permitem e aprovam que muitos adolescentes brinquem de marido e mulher no seu quarto de crianças. O que tem de errado em deixar o namoradinho dormir com a namoradinha? Nada, mas é isso mesmo que se faz na casa dos pais: dormir --não transar. Para descobrir o que é sexo, é melhor sair de casa.

Por que condenar os adolescentes a começar sua vida sexual "em família", ou seja, dormindo?

3) Isabelle diz que ela podia até não gostar de se prostituir, mas, uma vez de volta ao lar, ela estava a fim de recomeçar. É uma definição perfeita da fantasia erótica: a realização pode não dar prazer, mas a gente fica a fim de recomeçar, sobretudo quando se afoga na mesmice.

4) Para encontrar clientes, Isabelle tem um perfil (sem rosto) num site. Receamos que a internet seja o paraíso dos predadores de crianças. Mas o inverso talvez tenha se tornado mais frequente: menores disfarçados como maiores se oferecem para sexo, por dinheiro ou não.

5) Engraçado. Podemos duvidar da maturidade de alguém de 17 anos para se prostituir ou mesmo para transar, a não ser que isso aconteça com o namorado de pelúcia --aquele que, de manhã, joga videogame com o irmãozinho.

Ao mesmo tempo, queremos que esse alguém de 17 anos, na escola, leia "Roman", que Rimbaud escreveu, justamente, aos 17 anos. Mathilde Mauté, a mulher de Paul Verlaine, tinha 17 anos e estava grávida quando Rimbaud, 17 anos, chegou na casa de Verlaine para começar a tórrida e famosa história de amor dos dois amigos.

Seria bom decidir um dia o que queremos e esperamos de um adolescente.
6) A partir de que idade, para nossas leis, um jovem pode livremente consentir a ter sexo com coetâneos e adultos? A idade do consentimento sexual, na França, é 15 anos. No Brasil, há muito tempo, ela é de 14. Aposto que muitos imaginavam que fosse mais tarde.
Tanto a lei francesa quanto a brasileira levam em conta uma vulnerabilidade dos jovens até os 18 anos. E considera-se que a prostituição se aproveite dessa vulnerabilidade. Ou seja, é permitido que um adulto transe com alguém de 17 anos que consinta por amor (por exemplo). Mas não se a transa for por dinheiro.

Não tenho nenhuma simpatia pela prostituição de adolescentes. Mas não deixa de ser bizarro: se a idade do consentimento é 14 ou 15 anos, por que a liberdade de se prostituir começaria só aos 18? Duas respostas possíveis.

A primeira é que somos ingênuos. Acreditamos que transar com alguém "por amor" não signifique se aproveitar de sua vulnerabilidade. Tendo a pensar o contrário: o amor, pretenso ou "verdadeiro", sempre foi uma arma para pegar inocentes desprevenidos.

A segunda resposta é que, apesar de nossa suposta liberação, somos escandalizados pela ideia de que haja desejo sexual e sexo sem a boa desculpa do envolvimento emocional. Eles podem transar porque se amam. Agora, transar só para transar é coisa de puta, não é?

Contardo Calligaris – Folha de São Paulo

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

CRIANÇA PRECISA SER CUIDADA



Outros formatos de família
Rolesy Sayão

Já faz tempo que nossa sociedade discute as mudanças que têm ocorrido nas famílias. Primeiramente a separação, depois o divórcio e na sequência os recasamentos que surgiram como consequência provocaram uma grande modificação no grupo que, tradicionalmente, era chamado de família e cuja estrutura era formada por um homem e uma mulher que se uniam até que a morte os separasse e tinham filhos. Agora, há pelo menos duas décadas, uma nova discussão entrou nessa pauta: a formação de grupos familiares que têm como base um casal formado por duas pessoas do mesmo sexo.

A partir da década de 1960, quando surgiram as primeiras mudanças significativas na configuração familiar , não faltaram análises preconceituosas que defendiam a permanência da configuração familiar tradicional em nome do desenvolvimento “sadio” das crianças. Na época em que casais começaram a se separar não faltaram teorias e conjecturas que afirmavam que filhos de casais separados tinham todas as possibilidades de serem “crianças problemáticas”. Hoje, com uma geração de adultos que foram criados por pais separados vivendo como qualquer outro adulto, constatamos que tal profecia não se realizou.  A separação não se mostrou, ela mesma, um fator responsável por gerar problemas aos filhos.

Atualmente, mesmo com a visibilidade social da condição homossexual de um grande número de pessoas que lutam por uma vida digna e com os mesmos direitos civis e sociais de todos, dá para perceber que ainda há muito preconceito tanto em relação às novas configurações familiares em geral quanto especificamente àquelas que têm sua base formada por uma união homossexual. E, como não poderia deixar de ser, as crianças têm sido novamente usadas como o fiel da balança aos que são contrários a essa formação familiar. Isso nos permite concluir que os casais homossexuais trilham, atualmente, o mesmo caminho que casais heterossexuais que se separaram já trilharam na busca da legitimidade de sua condição. Agora é a hora, portanto, de refletirmos a respeito das crianças em seu contexto familiar.  

O que é importante para uma criança para que ela tenha condições favoráveis ao seu desenvolvimento? Que ela seja amada, primeiramente. E não se trata de um tipo de amor pegajoso que enche a criança de abraços, beijos e declarações sem fim. Trata-se, sim, de um amor que se expressa em cuidados, na proteção necessária – sem exagero – e na presença adulta para a introdução da criança no mundo das relações com os outros.
Ora, qualquer pessoa pode, potencialmente, oferecer isso a uma criança seja ela homossexual ou não, separada ou não. Da mesma maneira, qualquer pessoa pode também não ter disponibilidade pessoal para oferecer esse contexto a um filho, seja ela unida a uma pessoa do sexo oposto, do mesmo sexo ou sozinha, não é verdade? Então, para a criança, pouco importa o tipo de configuração familiar a que pertence. Para ela, importa mesmo é que sua família, tenha ela a configuração que tiver, lhe ofereça o sentimento de pertencimento e que funcione como guia adulto seguro na introdução à vida em  grupo.

Todo adulto, tenha ou não filhos, tem compromissos humanos e éticos com todas as crianças já que elas é que serão responsáveis por nosso futuro. Isso implica em muitas responsabilidades e, especialmente, em uma das mais árduas: a de superar preconceitos, sejam estes de raça, de religião, de classe social ou de gênero e sexualidade, entre outros. Por isso, temos obrigação de olhar para os novos contextos familiares em que vivem muitas crianças sob a ótica da paternidade e/ou maternidade responsáveis tão somente. 


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Não aceito a ideia de um movimento político que se baseie exclusivamente no medo.



Fragmentos de uma das entrevistas com Fuc Ferry, no Brasil

Qual é o maior obstáculo à felicidade? A felicidade não existe. Temos momentos de alegria, mas não existe um estado permanente de satisfação. Separações, a morte de pessoas queridas, doenças e acidentes são inevitáveis. É por isso que a busca pela felicidade plena não faz sentido. O que podemos almejar é a serenidade, algo completamente diferente. Só se atinge a serenidade vencendo o medo. É o medo que nos torna egoístas e nos paralisa, que nos impede de sorrir e de pensar de forma inteligente, com liberdade. Os filósofos gregos costumavam dizer que o sábio é aquele que consegue vencer o medo.

O medo da morte é o maior obstáculo para o homem? Existem basicamente três grandes medos. O primeiro é a timidez. Ele aparece, por exemplo, quando somos apresentados a alguém muito importante, ou quando precisamos falar em público. É a pressão da sociedade. O segundo medo são as fobias. Medo do escuro, de insetos, de ficar preso num elevador. O terceiro é o medo da morte. Tememos mais a morte de pessoas que amamos do que a nossa própria morte. Não me refiro apenas à morte biológica, mas a tudo o que é irreversível. O corvo do poema homônimo de Edgar Alan Poe exemplifica isso perfeitamente. Repete a todo momento, como um papagaio, a expressão “nunca mais”. Essa é a morte dentro da vida. Para uma criança, pode ser o divórcio dos pais, já que nunca mais os verá juntos. O nunca mais, a irreversibilidade da vida, nos dá a experiência da morte. A grande questão da serenidade, e não da felicidade, é como vencer esse medo. Toda a filosofia, desde Homero e Platão até Schopenhauer e Nietzsche está baseada na doutrina da serenidade.

Além das fobias conhecidas, existem as modernas? Vivemos a sociedade do medo. Aos três grandes medos que eu falei, adiciona-se outro, tipicamente ocidental: o medo que se desenvolveu com a ecologia politica. Medo do eleito estufa, do buraco na camada de ozônio, do aquecimento global, de micróbios, da poluição, do fim dos recursos naturais. A cada ano, um novo medo se adiciona a todos os outros: medo da carne vermelha, da gripe aviária, da aids, do sexo, do tabaco, da velocidade dos carros. Os grandes ecologistas e os filmes que tratam do tema têm como objetivo principal trazer o medo. No livro O princípio da responsabilidade, do filósofo alemão Hans Jonas, há um capítulo chamado Heurística do medo. Nele, o medo é descrito como uma paixão positiva e útil. Em toda a história da filosofia ocidental, o medo é o inimigo, é algo infantil, que faz mal. A ecologia inverte essa tradição filosófica ao sustentar que o medo é o começo de uma nova sabedoria e que, graças ao medo, os seres humanos vão tomar consciência dos perigos que existem no planeta. O medo não é mais visto como algo infantilizado, mas como o primeiro passo no caminho da sabedoria. É o que os ecologistas chamam de princípio da precaução. Isso não quer dizer que os ecologistas estejam errados. Há um componente de verdade no que dizem, mas há também muita mentira. Não aceito a ideia de um movimento político que se baseie exclusivamente no medo.

Com a disseminação do medo, ficou mais difícil superá-lo? A primeira grande resposta a essa pergunta nasce na Odisséia, de Homero. O poema conta como Ulisses vencerá os maiores medos da existência humana: o medo do passado e do futuro. Ulisses, que vive em Ítaca, uma cidade grega, com sua mulher Penélope, precisa partir para a Guerra de Tróia. Fica 20 anos longe de casa, imerso no caos da guerra. A história mostra como Ulisses vai do caos à harmonia, da guerra à paz, do ódio ao amor de Penélope. Durante 20 anos ele se agarra ao passado, ou ao futuro, à nostalgia de Ítaca, ou à esperança de voltar a Ítaca. Quando retorna à terra natal depois de tanto tempo, pode, enfim, viver no presente. Os filósofos gregos diziam que o sábio é aquele que consegue pensar menos no passado e ter menos esperança. Se eu me separar, se mudar de casa, se trocar de emprego. O passado já aconteceu. O futuro é uma ilusão.

Como se ensinava filosofia nas grandes escolas gregas? Ao contrário do que ocorre nas nossas, nas escolas gregas não havia discursos, mas exercícios de aprendizado da sabedoria. Um exemplo: na escola estóica, no século IV A.C., Zenão de Cítio, o primeiro estóico, pedia a seus alunos que pegassem um peixe morto na feira e o amarrassem em uma coleira para eva-lo para passear como se fosse um cachorro. Quando passavam, quase todos olhavam e zombavam. O que pretendiam? Que os alunos não temessem o que os outros diziam. O sábio não é apenas aquele que vence o medo do olhar alheio, do que os outros pensam. O sábio não se importa com as convenções artificiais dessas “boas pessoas”. Ele desvia o olhar para concentrar-se na natureza, no cosmos. Vive em harmonia com a ordem natural, com ele próprio e com o mundo.

Por que os maiores filósofos do mundo são gregos e alemães? Tanto no caso grego, quanto no alemão, o grande motivo é a proximidade entre religião e filosofia. A filosofia sempre foi a secularização e a laicização de uma religião já existente. A filosofia grega, por exemplo, é uma versão secular e laica da mitologia grega. Da mesma forma, toda a filosofia alemã é uma apresentação racional da teologia protestante de Lutero. Ao afirmar “eu não quero ler a bíblia com a tradução latina”, “eu desconfio daqueles que estão no Vaticano”, Lutero resumiu o grande gesto do protestantismo: a busca pela verdade absoluta. Esse gesto abarca toda a filosofia alemã. Antes da filosofia, os dois povos viveram momentos muito importantes na religião. Você não tem isso nos Estados Unidos, nem na França. Ao contrário do que pensam os franceses, Descartes não é um bom filósofo.



FONTE: Revista Veja/2011