Fragmentos de uma das
entrevistas com Fuc Ferry, no Brasil
Qual é o maior obstáculo à
felicidade? A felicidade não existe. Temos
momentos de alegria, mas não existe um estado permanente de satisfação.
Separações, a morte de pessoas queridas, doenças e acidentes são inevitáveis. É
por isso que a busca pela felicidade plena não faz sentido. O que podemos
almejar é a serenidade, algo completamente diferente. Só se atinge a serenidade
vencendo o medo. É o medo que nos torna egoístas e nos paralisa, que nos impede
de sorrir e de pensar de forma inteligente, com liberdade. Os filósofos gregos
costumavam dizer que o sábio é aquele que consegue vencer o medo.
O medo da morte é o maior
obstáculo para o homem? Existem basicamente três grandes
medos. O primeiro é a timidez.
Ele aparece, por exemplo, quando somos apresentados a alguém muito importante,
ou quando precisamos falar em público. É a pressão da sociedade. O segundo medo
são as fobias. Medo
do escuro, de insetos, de ficar preso num elevador. O terceiro é o medo da morte. Tememos mais a
morte de pessoas que amamos do que a nossa própria morte. Não me refiro apenas
à morte biológica, mas a tudo o que é irreversível. O corvo do poema homônimo
de Edgar Alan Poe exemplifica isso perfeitamente. Repete a todo momento, como
um papagaio, a expressão “nunca mais”. Essa é a morte dentro da vida. Para uma
criança, pode ser o divórcio dos pais, já que nunca mais os verá juntos. O
nunca mais, a irreversibilidade da vida, nos dá a experiência da morte. A
grande questão da serenidade, e não da felicidade, é como vencer esse medo.
Toda a filosofia, desde Homero e Platão até Schopenhauer e Nietzsche está
baseada na doutrina da serenidade.
Além
das fobias conhecidas, existem as modernas? Vivemos a sociedade do medo. Aos três
grandes medos que eu falei, adiciona-se outro, tipicamente ocidental: o medo que se desenvolveu com a
ecologia politica. Medo do eleito estufa, do buraco na camada de ozônio,
do aquecimento global, de micróbios, da poluição, do fim dos recursos naturais.
A cada ano, um novo medo se adiciona a todos os outros: medo da carne vermelha,
da gripe aviária, da aids, do sexo, do tabaco, da velocidade dos carros. Os
grandes ecologistas e os filmes que tratam do tema têm como objetivo principal
trazer o medo. No livro O princípio da responsabilidade, do filósofo alemão Hans Jonas, há um capítulo
chamado Heurística do medo. Nele, o medo é descrito como uma paixão positiva e
útil. Em toda a história da filosofia ocidental, o medo é o inimigo, é algo
infantil, que faz mal. A ecologia inverte essa tradição filosófica ao sustentar
que o medo é o começo de uma nova sabedoria e que, graças ao medo, os seres
humanos vão tomar consciência dos perigos que existem no planeta. O medo não é
mais visto como algo infantilizado, mas como o primeiro passo no caminho da
sabedoria. É o que os ecologistas chamam de princípio da precaução. Isso não quer dizer que os
ecologistas estejam errados. Há um componente de verdade no que dizem, mas há
também muita mentira. Não aceito a ideia de um movimento político que se baseie
exclusivamente no medo.
Com
a disseminação do medo, ficou mais difícil superá-lo? A primeira grande resposta a essa
pergunta nasce na Odisséia, de Homero. O poema conta como Ulisses
vencerá os maiores medos da existência humana: o medo do passado e do futuro.
Ulisses, que vive em Ítaca, uma cidade grega, com sua mulher Penélope, precisa
partir para a Guerra de Tróia. Fica 20 anos longe de casa, imerso no caos da
guerra. A história mostra como Ulisses vai do caos à harmonia, da guerra à paz,
do ódio ao amor de Penélope. Durante 20 anos ele se agarra ao passado, ou ao
futuro, à nostalgia de Ítaca, ou à esperança de voltar a Ítaca. Quando retorna
à terra natal depois de tanto tempo, pode, enfim, viver no presente. Os filósofos gregos diziam que o
sábio é aquele que consegue pensar menos no passado e ter menos esperança. Se
eu me separar, se mudar de casa, se trocar de emprego. O passado já aconteceu.
O futuro é uma ilusão.
Como
se ensinava filosofia nas grandes escolas gregas? Ao contrário do que ocorre nas
nossas, nas escolas gregas não havia discursos, mas exercícios de aprendizado
da sabedoria. Um exemplo: na escola estóica, no século IV A.C., Zenão de Cítio,
o primeiro estóico, pedia a seus alunos que pegassem um peixe morto na feira e
o amarrassem em uma coleira para eva-lo para passear como se fosse um cachorro.
Quando passavam, quase
todos olhavam e zombavam. O que pretendiam? Que os alunos não temessem o que os
outros diziam. O sábio não é apenas aquele que vence o medo do olhar alheio, do
que os outros pensam. O sábio não se importa com as convenções artificiais
dessas “boas pessoas”. Ele desvia o olhar para concentrar-se na
natureza, no cosmos. Vive em harmonia com a ordem natural, com ele próprio e
com o mundo.
Por
que os maiores filósofos do mundo são gregos e alemães? Tanto no caso grego, quanto no
alemão, o grande motivo é a proximidade entre religião e filosofia. A filosofia
sempre foi a secularização e a laicização de uma religião já existente. A
filosofia grega, por exemplo, é uma versão secular e laica da mitologia grega.
Da mesma forma, toda a filosofia alemã é uma apresentação racional da teologia
protestante de Lutero. Ao afirmar “eu não quero ler a bíblia com a tradução latina”,
“eu desconfio daqueles que estão no Vaticano”, Lutero resumiu o grande gesto do
protestantismo: a busca pela verdade absoluta. Esse gesto abarca toda a
filosofia alemã. Antes da filosofia, os dois povos viveram momentos muito
importantes na religião. Você não tem isso nos Estados Unidos, nem na França.
Ao contrário do que pensam os franceses, Descartes não é um bom filósofo.
FONTE: Revista Veja/2011
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