segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Não aceito a ideia de um movimento político que se baseie exclusivamente no medo.



Fragmentos de uma das entrevistas com Fuc Ferry, no Brasil

Qual é o maior obstáculo à felicidade? A felicidade não existe. Temos momentos de alegria, mas não existe um estado permanente de satisfação. Separações, a morte de pessoas queridas, doenças e acidentes são inevitáveis. É por isso que a busca pela felicidade plena não faz sentido. O que podemos almejar é a serenidade, algo completamente diferente. Só se atinge a serenidade vencendo o medo. É o medo que nos torna egoístas e nos paralisa, que nos impede de sorrir e de pensar de forma inteligente, com liberdade. Os filósofos gregos costumavam dizer que o sábio é aquele que consegue vencer o medo.

O medo da morte é o maior obstáculo para o homem? Existem basicamente três grandes medos. O primeiro é a timidez. Ele aparece, por exemplo, quando somos apresentados a alguém muito importante, ou quando precisamos falar em público. É a pressão da sociedade. O segundo medo são as fobias. Medo do escuro, de insetos, de ficar preso num elevador. O terceiro é o medo da morte. Tememos mais a morte de pessoas que amamos do que a nossa própria morte. Não me refiro apenas à morte biológica, mas a tudo o que é irreversível. O corvo do poema homônimo de Edgar Alan Poe exemplifica isso perfeitamente. Repete a todo momento, como um papagaio, a expressão “nunca mais”. Essa é a morte dentro da vida. Para uma criança, pode ser o divórcio dos pais, já que nunca mais os verá juntos. O nunca mais, a irreversibilidade da vida, nos dá a experiência da morte. A grande questão da serenidade, e não da felicidade, é como vencer esse medo. Toda a filosofia, desde Homero e Platão até Schopenhauer e Nietzsche está baseada na doutrina da serenidade.

Além das fobias conhecidas, existem as modernas? Vivemos a sociedade do medo. Aos três grandes medos que eu falei, adiciona-se outro, tipicamente ocidental: o medo que se desenvolveu com a ecologia politica. Medo do eleito estufa, do buraco na camada de ozônio, do aquecimento global, de micróbios, da poluição, do fim dos recursos naturais. A cada ano, um novo medo se adiciona a todos os outros: medo da carne vermelha, da gripe aviária, da aids, do sexo, do tabaco, da velocidade dos carros. Os grandes ecologistas e os filmes que tratam do tema têm como objetivo principal trazer o medo. No livro O princípio da responsabilidade, do filósofo alemão Hans Jonas, há um capítulo chamado Heurística do medo. Nele, o medo é descrito como uma paixão positiva e útil. Em toda a história da filosofia ocidental, o medo é o inimigo, é algo infantil, que faz mal. A ecologia inverte essa tradição filosófica ao sustentar que o medo é o começo de uma nova sabedoria e que, graças ao medo, os seres humanos vão tomar consciência dos perigos que existem no planeta. O medo não é mais visto como algo infantilizado, mas como o primeiro passo no caminho da sabedoria. É o que os ecologistas chamam de princípio da precaução. Isso não quer dizer que os ecologistas estejam errados. Há um componente de verdade no que dizem, mas há também muita mentira. Não aceito a ideia de um movimento político que se baseie exclusivamente no medo.

Com a disseminação do medo, ficou mais difícil superá-lo? A primeira grande resposta a essa pergunta nasce na Odisséia, de Homero. O poema conta como Ulisses vencerá os maiores medos da existência humana: o medo do passado e do futuro. Ulisses, que vive em Ítaca, uma cidade grega, com sua mulher Penélope, precisa partir para a Guerra de Tróia. Fica 20 anos longe de casa, imerso no caos da guerra. A história mostra como Ulisses vai do caos à harmonia, da guerra à paz, do ódio ao amor de Penélope. Durante 20 anos ele se agarra ao passado, ou ao futuro, à nostalgia de Ítaca, ou à esperança de voltar a Ítaca. Quando retorna à terra natal depois de tanto tempo, pode, enfim, viver no presente. Os filósofos gregos diziam que o sábio é aquele que consegue pensar menos no passado e ter menos esperança. Se eu me separar, se mudar de casa, se trocar de emprego. O passado já aconteceu. O futuro é uma ilusão.

Como se ensinava filosofia nas grandes escolas gregas? Ao contrário do que ocorre nas nossas, nas escolas gregas não havia discursos, mas exercícios de aprendizado da sabedoria. Um exemplo: na escola estóica, no século IV A.C., Zenão de Cítio, o primeiro estóico, pedia a seus alunos que pegassem um peixe morto na feira e o amarrassem em uma coleira para eva-lo para passear como se fosse um cachorro. Quando passavam, quase todos olhavam e zombavam. O que pretendiam? Que os alunos não temessem o que os outros diziam. O sábio não é apenas aquele que vence o medo do olhar alheio, do que os outros pensam. O sábio não se importa com as convenções artificiais dessas “boas pessoas”. Ele desvia o olhar para concentrar-se na natureza, no cosmos. Vive em harmonia com a ordem natural, com ele próprio e com o mundo.

Por que os maiores filósofos do mundo são gregos e alemães? Tanto no caso grego, quanto no alemão, o grande motivo é a proximidade entre religião e filosofia. A filosofia sempre foi a secularização e a laicização de uma religião já existente. A filosofia grega, por exemplo, é uma versão secular e laica da mitologia grega. Da mesma forma, toda a filosofia alemã é uma apresentação racional da teologia protestante de Lutero. Ao afirmar “eu não quero ler a bíblia com a tradução latina”, “eu desconfio daqueles que estão no Vaticano”, Lutero resumiu o grande gesto do protestantismo: a busca pela verdade absoluta. Esse gesto abarca toda a filosofia alemã. Antes da filosofia, os dois povos viveram momentos muito importantes na religião. Você não tem isso nos Estados Unidos, nem na França. Ao contrário do que pensam os franceses, Descartes não é um bom filósofo.



FONTE: Revista Veja/2011

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