quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O amor desculpa tudo



Nesse texto, Calligaris ascende à luz do quarto. E quando a claridade envolve todo o espaço, o que se revela é o tabu da sexualidade. Em nome do amor, o sexo é liberado desde a adolescência.  Mas, sem amor, ele ainda é percebido como um pecado ou uma perversão.


 Adorável 'Jovem e Bela'

"Jovem e Bela", de François Ozon, conta uma temporada na vida de uma adolescente: Isabelle, 17 anos, tem seu primeiro namorico de verão e se prostitui no outono e inverno seguintes. Marine Vacth, a atriz, além de jovem e bela, é adoravelmente emburrada, como só os adolescentes franceses conseguem ser.

Aviso aos espectadores: entre ela, o comportamento de seus pais, a classe do colégio discutindo um poema de Rimbaud e a paisagem, o filme pode matar qualquer um de saudade de Paris e da França. Agora, alguns pontos (sem "spoilers").

1) O namorico de Isabelle durante o verão é sinistro, como a maioria dos namoricos de praia entre adolescentes. Isabelle olha para sua primeira transa como uma espectadora que não acredita na miséria do que está acontecendo. Cá entre nós, qualquer coisa é melhor e mais interessante do que aquilo --talvez até se prostituir num estacionamento.

2) Durante esse verão, Isabelle se irrita quando a mãe manifesta uma curiosidade bestamente cúmplice: cadê aquele jovem alemão bonito? Os pais adoram que os namoradinhos se incorporem ao cotidiano da família: eles esperam que o lar acabe domesticando o desejo sexual das filhas.

Mais tarde, no filme, Isabelle não aguenta a visão de seu novo namorado de pijama na mesa de família. Para completar, o namorado vai jogar videogame com o irmãozinho de Isabelle. Essa prática nefasta é frequente; conselho: meus amigos, decidam-se, cresçam ou caiam fora, joguem com o irmão ou namorem com a irmã.

Com a desculpa de que a rua de noite é insegura, os pais permitem e aprovam que muitos adolescentes brinquem de marido e mulher no seu quarto de crianças. O que tem de errado em deixar o namoradinho dormir com a namoradinha? Nada, mas é isso mesmo que se faz na casa dos pais: dormir --não transar. Para descobrir o que é sexo, é melhor sair de casa.

Por que condenar os adolescentes a começar sua vida sexual "em família", ou seja, dormindo?

3) Isabelle diz que ela podia até não gostar de se prostituir, mas, uma vez de volta ao lar, ela estava a fim de recomeçar. É uma definição perfeita da fantasia erótica: a realização pode não dar prazer, mas a gente fica a fim de recomeçar, sobretudo quando se afoga na mesmice.

4) Para encontrar clientes, Isabelle tem um perfil (sem rosto) num site. Receamos que a internet seja o paraíso dos predadores de crianças. Mas o inverso talvez tenha se tornado mais frequente: menores disfarçados como maiores se oferecem para sexo, por dinheiro ou não.

5) Engraçado. Podemos duvidar da maturidade de alguém de 17 anos para se prostituir ou mesmo para transar, a não ser que isso aconteça com o namorado de pelúcia --aquele que, de manhã, joga videogame com o irmãozinho.

Ao mesmo tempo, queremos que esse alguém de 17 anos, na escola, leia "Roman", que Rimbaud escreveu, justamente, aos 17 anos. Mathilde Mauté, a mulher de Paul Verlaine, tinha 17 anos e estava grávida quando Rimbaud, 17 anos, chegou na casa de Verlaine para começar a tórrida e famosa história de amor dos dois amigos.

Seria bom decidir um dia o que queremos e esperamos de um adolescente.
6) A partir de que idade, para nossas leis, um jovem pode livremente consentir a ter sexo com coetâneos e adultos? A idade do consentimento sexual, na França, é 15 anos. No Brasil, há muito tempo, ela é de 14. Aposto que muitos imaginavam que fosse mais tarde.
Tanto a lei francesa quanto a brasileira levam em conta uma vulnerabilidade dos jovens até os 18 anos. E considera-se que a prostituição se aproveite dessa vulnerabilidade. Ou seja, é permitido que um adulto transe com alguém de 17 anos que consinta por amor (por exemplo). Mas não se a transa for por dinheiro.

Não tenho nenhuma simpatia pela prostituição de adolescentes. Mas não deixa de ser bizarro: se a idade do consentimento é 14 ou 15 anos, por que a liberdade de se prostituir começaria só aos 18? Duas respostas possíveis.

A primeira é que somos ingênuos. Acreditamos que transar com alguém "por amor" não signifique se aproveitar de sua vulnerabilidade. Tendo a pensar o contrário: o amor, pretenso ou "verdadeiro", sempre foi uma arma para pegar inocentes desprevenidos.

A segunda resposta é que, apesar de nossa suposta liberação, somos escandalizados pela ideia de que haja desejo sexual e sexo sem a boa desculpa do envolvimento emocional. Eles podem transar porque se amam. Agora, transar só para transar é coisa de puta, não é?

Contardo Calligaris – Folha de São Paulo

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

CRIANÇA PRECISA SER CUIDADA



Outros formatos de família
Rolesy Sayão

Já faz tempo que nossa sociedade discute as mudanças que têm ocorrido nas famílias. Primeiramente a separação, depois o divórcio e na sequência os recasamentos que surgiram como consequência provocaram uma grande modificação no grupo que, tradicionalmente, era chamado de família e cuja estrutura era formada por um homem e uma mulher que se uniam até que a morte os separasse e tinham filhos. Agora, há pelo menos duas décadas, uma nova discussão entrou nessa pauta: a formação de grupos familiares que têm como base um casal formado por duas pessoas do mesmo sexo.

A partir da década de 1960, quando surgiram as primeiras mudanças significativas na configuração familiar , não faltaram análises preconceituosas que defendiam a permanência da configuração familiar tradicional em nome do desenvolvimento “sadio” das crianças. Na época em que casais começaram a se separar não faltaram teorias e conjecturas que afirmavam que filhos de casais separados tinham todas as possibilidades de serem “crianças problemáticas”. Hoje, com uma geração de adultos que foram criados por pais separados vivendo como qualquer outro adulto, constatamos que tal profecia não se realizou.  A separação não se mostrou, ela mesma, um fator responsável por gerar problemas aos filhos.

Atualmente, mesmo com a visibilidade social da condição homossexual de um grande número de pessoas que lutam por uma vida digna e com os mesmos direitos civis e sociais de todos, dá para perceber que ainda há muito preconceito tanto em relação às novas configurações familiares em geral quanto especificamente àquelas que têm sua base formada por uma união homossexual. E, como não poderia deixar de ser, as crianças têm sido novamente usadas como o fiel da balança aos que são contrários a essa formação familiar. Isso nos permite concluir que os casais homossexuais trilham, atualmente, o mesmo caminho que casais heterossexuais que se separaram já trilharam na busca da legitimidade de sua condição. Agora é a hora, portanto, de refletirmos a respeito das crianças em seu contexto familiar.  

O que é importante para uma criança para que ela tenha condições favoráveis ao seu desenvolvimento? Que ela seja amada, primeiramente. E não se trata de um tipo de amor pegajoso que enche a criança de abraços, beijos e declarações sem fim. Trata-se, sim, de um amor que se expressa em cuidados, na proteção necessária – sem exagero – e na presença adulta para a introdução da criança no mundo das relações com os outros.
Ora, qualquer pessoa pode, potencialmente, oferecer isso a uma criança seja ela homossexual ou não, separada ou não. Da mesma maneira, qualquer pessoa pode também não ter disponibilidade pessoal para oferecer esse contexto a um filho, seja ela unida a uma pessoa do sexo oposto, do mesmo sexo ou sozinha, não é verdade? Então, para a criança, pouco importa o tipo de configuração familiar a que pertence. Para ela, importa mesmo é que sua família, tenha ela a configuração que tiver, lhe ofereça o sentimento de pertencimento e que funcione como guia adulto seguro na introdução à vida em  grupo.

Todo adulto, tenha ou não filhos, tem compromissos humanos e éticos com todas as crianças já que elas é que serão responsáveis por nosso futuro. Isso implica em muitas responsabilidades e, especialmente, em uma das mais árduas: a de superar preconceitos, sejam estes de raça, de religião, de classe social ou de gênero e sexualidade, entre outros. Por isso, temos obrigação de olhar para os novos contextos familiares em que vivem muitas crianças sob a ótica da paternidade e/ou maternidade responsáveis tão somente. 


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Não aceito a ideia de um movimento político que se baseie exclusivamente no medo.



Fragmentos de uma das entrevistas com Fuc Ferry, no Brasil

Qual é o maior obstáculo à felicidade? A felicidade não existe. Temos momentos de alegria, mas não existe um estado permanente de satisfação. Separações, a morte de pessoas queridas, doenças e acidentes são inevitáveis. É por isso que a busca pela felicidade plena não faz sentido. O que podemos almejar é a serenidade, algo completamente diferente. Só se atinge a serenidade vencendo o medo. É o medo que nos torna egoístas e nos paralisa, que nos impede de sorrir e de pensar de forma inteligente, com liberdade. Os filósofos gregos costumavam dizer que o sábio é aquele que consegue vencer o medo.

O medo da morte é o maior obstáculo para o homem? Existem basicamente três grandes medos. O primeiro é a timidez. Ele aparece, por exemplo, quando somos apresentados a alguém muito importante, ou quando precisamos falar em público. É a pressão da sociedade. O segundo medo são as fobias. Medo do escuro, de insetos, de ficar preso num elevador. O terceiro é o medo da morte. Tememos mais a morte de pessoas que amamos do que a nossa própria morte. Não me refiro apenas à morte biológica, mas a tudo o que é irreversível. O corvo do poema homônimo de Edgar Alan Poe exemplifica isso perfeitamente. Repete a todo momento, como um papagaio, a expressão “nunca mais”. Essa é a morte dentro da vida. Para uma criança, pode ser o divórcio dos pais, já que nunca mais os verá juntos. O nunca mais, a irreversibilidade da vida, nos dá a experiência da morte. A grande questão da serenidade, e não da felicidade, é como vencer esse medo. Toda a filosofia, desde Homero e Platão até Schopenhauer e Nietzsche está baseada na doutrina da serenidade.

Além das fobias conhecidas, existem as modernas? Vivemos a sociedade do medo. Aos três grandes medos que eu falei, adiciona-se outro, tipicamente ocidental: o medo que se desenvolveu com a ecologia politica. Medo do eleito estufa, do buraco na camada de ozônio, do aquecimento global, de micróbios, da poluição, do fim dos recursos naturais. A cada ano, um novo medo se adiciona a todos os outros: medo da carne vermelha, da gripe aviária, da aids, do sexo, do tabaco, da velocidade dos carros. Os grandes ecologistas e os filmes que tratam do tema têm como objetivo principal trazer o medo. No livro O princípio da responsabilidade, do filósofo alemão Hans Jonas, há um capítulo chamado Heurística do medo. Nele, o medo é descrito como uma paixão positiva e útil. Em toda a história da filosofia ocidental, o medo é o inimigo, é algo infantil, que faz mal. A ecologia inverte essa tradição filosófica ao sustentar que o medo é o começo de uma nova sabedoria e que, graças ao medo, os seres humanos vão tomar consciência dos perigos que existem no planeta. O medo não é mais visto como algo infantilizado, mas como o primeiro passo no caminho da sabedoria. É o que os ecologistas chamam de princípio da precaução. Isso não quer dizer que os ecologistas estejam errados. Há um componente de verdade no que dizem, mas há também muita mentira. Não aceito a ideia de um movimento político que se baseie exclusivamente no medo.

Com a disseminação do medo, ficou mais difícil superá-lo? A primeira grande resposta a essa pergunta nasce na Odisséia, de Homero. O poema conta como Ulisses vencerá os maiores medos da existência humana: o medo do passado e do futuro. Ulisses, que vive em Ítaca, uma cidade grega, com sua mulher Penélope, precisa partir para a Guerra de Tróia. Fica 20 anos longe de casa, imerso no caos da guerra. A história mostra como Ulisses vai do caos à harmonia, da guerra à paz, do ódio ao amor de Penélope. Durante 20 anos ele se agarra ao passado, ou ao futuro, à nostalgia de Ítaca, ou à esperança de voltar a Ítaca. Quando retorna à terra natal depois de tanto tempo, pode, enfim, viver no presente. Os filósofos gregos diziam que o sábio é aquele que consegue pensar menos no passado e ter menos esperança. Se eu me separar, se mudar de casa, se trocar de emprego. O passado já aconteceu. O futuro é uma ilusão.

Como se ensinava filosofia nas grandes escolas gregas? Ao contrário do que ocorre nas nossas, nas escolas gregas não havia discursos, mas exercícios de aprendizado da sabedoria. Um exemplo: na escola estóica, no século IV A.C., Zenão de Cítio, o primeiro estóico, pedia a seus alunos que pegassem um peixe morto na feira e o amarrassem em uma coleira para eva-lo para passear como se fosse um cachorro. Quando passavam, quase todos olhavam e zombavam. O que pretendiam? Que os alunos não temessem o que os outros diziam. O sábio não é apenas aquele que vence o medo do olhar alheio, do que os outros pensam. O sábio não se importa com as convenções artificiais dessas “boas pessoas”. Ele desvia o olhar para concentrar-se na natureza, no cosmos. Vive em harmonia com a ordem natural, com ele próprio e com o mundo.

Por que os maiores filósofos do mundo são gregos e alemães? Tanto no caso grego, quanto no alemão, o grande motivo é a proximidade entre religião e filosofia. A filosofia sempre foi a secularização e a laicização de uma religião já existente. A filosofia grega, por exemplo, é uma versão secular e laica da mitologia grega. Da mesma forma, toda a filosofia alemã é uma apresentação racional da teologia protestante de Lutero. Ao afirmar “eu não quero ler a bíblia com a tradução latina”, “eu desconfio daqueles que estão no Vaticano”, Lutero resumiu o grande gesto do protestantismo: a busca pela verdade absoluta. Esse gesto abarca toda a filosofia alemã. Antes da filosofia, os dois povos viveram momentos muito importantes na religião. Você não tem isso nos Estados Unidos, nem na França. Ao contrário do que pensam os franceses, Descartes não é um bom filósofo.



FONTE: Revista Veja/2011

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Autismo: Ainda temos muito que aprender


Entenda como funciona a mente de um autista.

Fonte: Revista Super Interessante

Enquanto sua irmã gêmea se desenvolvia normalmente, o progresso da canadense Carly Fleischmann era lento. Logo foi descoberta a razão: aos dois anos de idade, ela foi diagnosticada com autismo severo. Hoje, Carly é uma adolescente que não consegue falar – mas encontrou outro meio de se comunicar. Aos 11 anos, ela foi até o computador, agitada, e fez algo que deixou toda a sua família perplexa: digitou as palavras DOR e AJUDA e saiu correndo para vomitar no banheiro.

Supostamente, Carly nunca tinha aprendido a escrever. Mas aquilo mostrou que acontecia muito mais em sua mente do que qualquer um poderia imaginar. E foi assim que começou uma nova etapa em sua vida: ela foi incentivada a se comunicar mais desta forma e a criar contas em redes sociais, como o Twitter e o Facebook. Também ajudou o pai a escrever um livro sobre a sua condição e deu as informações para a criação de um site que simula a sua experiência diária com toda a descarga sensorial que recebe em situações cotidianas, como ir a um café. “O autismo me trancou em um corpo que eu não posso controlar”, diz ela no site.

Depois que sua história foi para a mídia, Carly começou a receber muitos e-mails de pessoas perguntando sobre o autismo e criou um canal para esponde-las. “As pessoas têm muitas de suas informações vindas dos chamados especialistas, mas eu acho que esses especialistas não conseguem dar uma explicação a algumas questões”, escreveu.
Veja a resposta que ela deu em seu site e entenda melhor o comportamento dos autistas:

Pergunta: Meu filho de seis anos ​​fica triste e chora com frequência, e eu não consigo entender o porquê. Você tem alguma sugestão de como eu posso descobrir o que está errado?
Carly: Pode ser muitas coisas. Será que ele está tomando algum medicamento? Eu tive muitas mudanças extremas de humor, como chorar e sentir raiva sem motivo, por causa da medicação. Também poderia ser algo que aconteceu mais cedo ou dias atrás e que ele está processando apenas agora.

Alguma vez você gritou aparentemente sem motivo? Por exemplo, você parecia feliz e relaxada, mas de repente começou a gritar? Minha filha faz isso às vezes e eu estou tentando descobrir o porquê.
Eu amo esta pergunta. Ela está fazendo uma filtragem dos sons e quebrando os ruídos e conversas que tem ouvido ao longo do dia. [O cérebro dos autistas funciona de maneira diferente e se sobrecarrega com estímulos externos, como sons, luzes, imagens e cheiros. Gritar, tapar os ouvidos, fazer ruídos ou movimentos repetitivos, segundo Carly, são uma forma de bloquear esses estímulos e se concentrar em apenas um]. Além dos gritos, você pode nos ver chorando ou rindo, tendo convulsões e até manifestando raiva. É a nossa reação ao, finalmente, entender as coisas que foram ditas e feitas no último minuto, dia ou até mês passado. Sua filha está bem.

Será que você poderia me dizer por que meu filho de quatro anos de idade (que tem autismo) grita no carro cada vez que paramos em um semáforo. Ele está bem e feliz enquanto o carro se move, mas, uma vez que paramos, ele grita e faz uma birra incontrolável.
Eu amo longas viagens de carro, elas são uma ótima forma de estímulo sem você precisar fazer nada. O movimento do carro e o cenário visual passando por ele permite que você bloqueie qualquer outra entrada sensorial e se concentre em apenas uma. Meu conselho é colocar uma cadeira de massagem no banco do carro. Assim, quando ele parar, seu filho ainda estará sentindo o movimento. Você pode também colocar um DVD mostrando um cenário em movimento.

De onde você tira tanta informação sobre a cultura pop?
Eu escuto tudo que está acontecendo ao meu redor. Se houver uma TV e eu estou em outro quarto, ainda posso ouvi-la. Se pessoas estão falando, eu gosto de ouvir o que estão dizendo, mesmo se não estão falando comigo. Não é porque eu não pareço estar prestando atenção que esse seja o caso.

Em seus sonhos você é autista?
Sim e não. Em alguns dos meus sonhos eu posso falar e fazer coisas que as crianças da minha idade fazem. Mas em outros eu ainda tenho dificuldade em fazer as coisas que posso fazer quando estou acordada. Eu sonho com um monte de coisas, como meninos e alimentos. Eu nem sempre me lembro dos meus sonhos, mas gosto deles.

Você pode descrever como se sente por dentro? Você acha que é diferente de crianças que não têm autismo?
O problema é que eu não sei o que as outras crianças sem autismo estão sentindo. Eu tenho lutas comigo todos os dias, desde que acordo até a hora de ir dormir. Não posso nem ir ao banheiro sem dizer a mim mesma para não pegar o sabonete e cheirá-lo ou sem lutar comigo mesma para não esvaziar todos os frascos de xampu.

 Existem coisas que você considera mais desafiadoras, como abotoar sua roupa ou cortar a comida com uma faca? Por que você acha que não pode fazer esse tipo de coisa? O que acha que poderíamos fazer para ajudar?
Algumas coisas eu acho que posso fazer, mas é preciso muita concentração para isso. Ficar sentada e digitar é algo muito avassalador para mim – eu preciso fazer pausas e dizer a mim mesma para fazê-lo. Eu não acho que as pessoas realmente sabem como é difícil. Parece tão fácil para todo mundo, mas é como falar três línguas ao mesmo tempo.

Para ler outras perguntas e respostas, veja o site de Carly.

Texto de: Ana Carolina Prado



terça-feira, 26 de novembro de 2013

Medo do Tédio?




A favor do tédio


Alguns livros recentes tratam dos malefícios de nossa constante vontade de encontrar diversões. Como sugere o título de um deles, "The Distraction Addiction", de Alex Pang (Little, Brown and Company), a vontade de se distrair seria um vício, uma forma de dependência.

Também, desde o começo do ano, leio artigos de revista sobre "os surpreendentes benefícios do fato de sentir tédio".

Os livros não me pareceram imperdíveis. E os artigos nas revistas de grande circulação citam "pesquisas" por ouvir dizer. Mas tanto faz. O conjunto manifesta um novo clima, segundo o qual a necessidade de sermos entretidos e estimulados continuamente não tornaria nossa vida mais rica e variada - ao contrário, é possível que essa dispersão empobreça nossa experiência.

Já foi dito por evolucionistas que a sorte de nossa espécie foi sua fraqueza: enquanto passávamos horas a fio escondidos e calados nos arbustos, esperando as feras passarem, a imobilidade e o tédio forçados produziram o surgimento da consciência, do pensamento e da fantasia. Que tal aplicar essa hipótese no campo da educação?

O que é mais "educativo" para as crianças? A diversão? Ou a chance de se entediar?

Umberto Eco atribui ao filósofo Benedetto Croce uma frase que ele cita com frequência: "O primeiro dever dos jovens é o de se tornar velhos". Esse slogan não tem como ser muito popular numa época em que o primeiro dever dos velhos é o de eles parecerem jovens. De fato, nesta nossa época, os adultos não ajudam os jovens a envelhecer; eles preferem mantê-los na mesma criancice que eles desejam para si.

Há pais agentes de viagem e relações-públicas, que, a cada dia, organizam programas "divertidíssimos" para seus rebentos. Esses pais procuram amigos para brincadeiras coletivas e oferecem, a jato contínuo, coquetéis de televisão, cinema, compras, videogames e até livros: qualquer coisa para evitar que a criança conheça a solidão e o enfado. Sabe-se lá quais pensamentos surgiriam numa mente entediada, não é?

Certo, é preciso estimular as crianças para que elas se desenvolvam na interação com o mundo. Mas o problema é que, sem tédio maçante, ninguém, criança ou adulto, consegue inventar para si uma vida interior. E para que serve uma vida interior? Se forem pensamentos aos quais recorremos quando não temos nada para fazer, não é mais simples a gente se manter ocupado e não precisar da tal vida interior?

O problema é que há uma boa parte da vida exterior que, sem vida interior, é totalmente insossa. Tomemos o exemplo do erotismo.

Está aberta até dia 12 de janeiro, no Metropolitan de Nova York, a exposição "Balthus: Cats and Girls" (Balthus: gatos e meninas). O catálogo, com o mesmo título, contém uma excelente introdução da curadora, Sabine Rewald.
Balthus (1908-2001) pintava com frequência gatos e meninas, juntos ou separados. Os gatos são ótimos administradores de seu tédio. Eles sabem se divertir quando a ocasião se apresenta, mas também sabem não fazer nada. Nisso, eles batem os cachorros, que sempre parecem aliviados quando finalmente têm algo para fazer.

Agora, esse dom da gestão do tédio, os gatos têm em comum com as meninas que Balthus pinta, que são todas, antes de mais nada,
entediadas.

As longas sessões nas quais posavam para o pintor talvez servissem deliberadamente para produzir o tédio que Balthus queria pintar. Há as meninas quase vencidas pelo sono no meio da leitura, há as que jogam paciência no silêncio palpável da tarde numa casa de província francesa - todas parecem entregues a devaneios inquietantes.

A gente pode se indignar com a diferença de idade entre Balthus e suas modelos adolescentes, mas o fato é que os retratos das meninas são uma extraordinária ilustração de que o tédio e a indolência são as portas que levam aos pensamentos impuros.

Ou seja, é bem provável que a criança entediada tenha uma vida erótica adulta mais interessante do que a criança que cresceu de joguinho em joguinho, de amiguinho em amiguinho, de diversão em diversão.

O que me leva, aliás, a uma suspeita. Os pais que combatem o tédio dos filhos talvez estejam combatendo possíveis "pensamentos impuros" --videogames, filmes, amigos, tablets e futebol, tudo contra o espantalho da masturbação, que espreita a criança entediada e solitária.

Agora, sem pensamentos impuros na criança, o que será o erotismo do adulto no qual essa criança se tornará? Um erotismo sem vida interior, talvez.

 Contardo Calligaris
Jornal Folha de São Paulo


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Educando Adultos



As mancadas de quem não se entende com crianças
Pessoas que têm jeito com criança agem de diversas formas. Umas são didáticas. Simplificam bastante as ideias e chegam como tradutoras de um mundo incrível que elas desconhecem. Contam novidades. Outras ganham com empatia. Crianças quando recebem atenção de verdade se afeiçoam. As divertidas têm passe livre para o universo infantil. Com graça, estabelecem rapidamente uma ponte com o outro. O humor faz o emburrado gargalhar e o triste sorrir. Traz uma nova perspectiva. Deveria ser vendido aos quilos.

Há muitas maneiras de agradar uma criança, mas começo a desconfiar que são poucas e quase sempre as mesmas mancadas capazes de condenar ao fracasso a interação entre adultos e pessoas recém-chegadas ao mundo. São atitudes que as afastam, tais como: 

Ignorar a presença da criança

Nunca mais vou esquecer de um atendimento prestado numa emergência em Brasília. Nossa filha mais velha tinha pouco mais de 2 anos e era o que podemos definir como uma criança colaborativa. Não encrencava nas consultas médicas. Boazinha que só.
Naquela noite, no entanto, uma febre de quase 40 graus não lhe deixava em paz e nos preocupava. Ao entrarmos na pequena sala para o exame clínico, fomos recebidos por uma pediatra de jaleco branco em pé e meio de costas. De costas continuou. Pegou o bloco, a caneta e começou a nos interrogar, sem levantar o rosto para cumprimentar. Ignorou a criança. Eu me perguntava em que momento ela olharia para minha filha não só para dizer olá, mas para verificar o semblante caído, a disposição geral. O primeiro contato visual foi travado na hora do exame. De chofre, a médica pediu "abre a boquinha pra tia". Conforme esperado, a criança não abriu a boquinha. Não só porque a médica não era sua tia mas porque não tinha passado por nenhuma preliminar de bom gosto. A consulta não terminou bem, como vocês podem imaginar. Num primeiro momento, eu e meu marido tentamos convencer a criança a deixar-se examinar, diante de uma médica cada vez mais impaciente. "Se ela não colaborar, não vai dar para examinar", disse a médica, um tanto irritada, despertando meus instintos protetores. Aí a coisa desandou porque solicitei outra pediatra e deixei uma pista para a moça tentar melhorar da próxima vez. "Você sequer olhou para ela!".
Pode ser que a pessoa tenha notado a presença da criança, mas muitas vezes age como se não a tivesse visto. Olha rapidamente, diz “que bonitinha“, daí vira pro adulto do lado e pergunta “qual o nome dela? Quantos anos tem?“.

Na pressa de sermos educados, vamos logo respondendo mas não deveríamos. Esse tipo de atitude só vale se a criança não puder ou não souber falar ainda. Ou se deixar claro que não tá a fim de papo. Daí a conversa segue no andar de cima. Lembre-se: dê oportunidade para a própria criança falar de si mesma.  

Forçar intimidade

Esse é um pecado muito comum. A pessoa acaba de ser apresentada ao seu filho, daí pede beijo, abraço e outras provas de amor à primeira vista. Gente sem-noção tem pra todo lado, mas o nível de autopercepção cai muito diante dos pequenos. Queria uma explicação científica para isso. As pessoas se sentem desobrigadas de seguir certas etiquetas sociais com elas. Por quê?

É como se as crianças não tivessem direito a serem reservadas. Se ela se recusa a dar um beijo, é retraída. Se não desenvolve a conversa proposta - mesmo que chata - é tímida. O responsável tenta explicar, "não, ela não é sempre assim não, não é Fulaninha?", mas Fulaninha já deu as costas, fechou a cara e a frase se perdeu antes do fim.   
Crianças são rotuladas sem dó nem piedade. São presas fáceis para estereótipos.

Sem perceber, muitos adultos cometem um erro aparentemente inofensivo. Comportam-se como se intimidade fosse item da nossa carga genética. "Sou amiga da sua avó", diz a senhora boazinha, se apresentando. Ótimo. Eis uma informação objetiva para a criança. Aí a pessoa completa: agora senta aqui no meu colo e vem cá me contar uma coisa...Oi?
Pode ser que funcione, mas ninguém herda amizades dos avós, dos pais, dos tios ou de quem quer que seja. Para a criança, aquela pessoa, íntima da família há décadas, é uma estranha. Tem que entender isso.

Muitas vezes, por educação, queremos que nossos filhos sejam a encarnação de um manual de etiqueta, o que seria ótimo, eu sei. Temos que lembrá-los o tempo todo certos padrões. Cumprimentou? Disse “bom dia“?

Também sofro quando minhas pequenas me deixam com cara de tacho e resolvem emudecer por completo diante do inesperado. Mas preciso reconhecer que muita gente espera que o cumprimento evolua para uma incrível manifestação de apreço e sociabilidade. Não dá. Cachorrinhos fazem festinha para o primeiro que aparece. Filhote da gente, não. 

Menosprezar o gosto das crianças

Durante muito tempo, acreditei que tratar mal as crianças era bater ou simplesmente não cuidar delas com carinho. Essa é a dupla do mal que costuma assombrar famílias com bebês em casa. E é por essa preocupação que damos início à nossa nova rotina de pais. E se a babá perder a paciência com ela? For ríspida? E se a assistente da creche não tiver carinho com meu bebê? E se essa vizinha bondosa que topou me ajudar for do tipo que grita com um incapaz porque depois ninguém irá saber?

São muitos "e se" aterrorizantes que povoam nossa cabeça. Um bebê não conta depois o que se passou na nossa ausência. Com o tempo percebi o quanto estava enganada. Há muitas outras maneiras mais sutis de se tratar mal uma criança.

Faça com que elas sintam que você é uma pessoa estranha dentro de casa. Cuide mas não brinque. Alimente mas não as conquiste. Menospreze as brincadeiras delas e ignore suas preferências, mesmo as mais inofensivas. 
"Não, você não vai mais beber água no seu copinho rosa porque EU não quero", é uma frase que expressa uma infeliz necessidade de alguém exercer o poder em cima do seu filho. Soa como tortura. E é. Ao ignorar a preferência da criança sempre, um adulto estará erguendo uma invisível e intransponível barreira nesse relacionamento fadado ao fracasso.  

Dar apelidos pejorativos

Quando eu era pequena, tinha uns "tios" que adoravam me chamar de bicho-do-mato porque eu nunca queria papo com eles e me escondia atrás da minha mãe. Quanto mais eles insistiam no apelido, mais eu fugia deles. Achava insuportável ser comparada a um bicho, mesmo que esse animal habitasse o mundo das metáforas. Felizmente o apelido não pegou, bicho-do-mato cresceu e passou a ganhar a vida conversando, ouvindo e falando bastante com as pessoas. Que coisa. Você pode até estar achando que era bullying. Esquece. Era uma brincadeira de mal gosto mesmo, do tipo que ainda vemos muito por aí.

Certa vez, vi um menino de uns quatro anos tentando chutar um adulto. O homem ria e continha o garoto com o braço esticado evitando sua aproximação pela testa.

“Para, cabeção, qual é, é brincadeira“ - dizia o adulto, enquanto a criança continuava demonstrando toda sua indignação num rompante de raiva e chutes.

Eu também tive vontade de chutar.

A capacidade de uma criança absorver certas piadas que mexem diretamente com sua autoestima é muito frágil. Diria até nula em muitas circunstâncias. Xingamentos descem mal, mesmo quando eles se afastam totalmente de uma análise fiel da realidade. É muito fácil ofender alguém cujo repertório de respostas para a vida ainda está em formação.  

Falar em tatibitati

Soar doce é uma preocupação natural da parte de quem quer se aproximar de um ser delicado. Bebês são delicados e costumamos falar doce com eles, o que não significa falar errado, trocando o R pelo L, o C pelo T e por aí vai. Fica engraçado, mal não faz, mas depois que o bebê cresce e vira uma criança...

No elevador, a ascensorista puxa conversa com uma menina, 2 anos e pouco presumíveis.
– Tê tá tomanto o tuquinho todo, tá?

– Não estou entendendo o que você tá falando – respondeu a criança, que soltou o canudinho para tentar se comunicar da melhor maneira possível com a moça que falava na língua do T.

Para irritar crianças maiores, não precisa nem apelar pro tatibitati. Basta o tom, aquele típico de uma infantilização forçada, que foge do natural e irrita até quem está perto. As crianças se fecham contrariadas. Não raro, você terá que fazer cara de paisagem quando seu filho lançar para você aquele olhar de quem vai dizer em um minuto: por que estão falando assim comigo?
Agora sendo realista: estabelecer uma conversa com crianças pode ser um desafio, ainda mais se você não estiver (mais) acostumado com elas. Muita gente não sabe o que fazer, fica visivelmente desconfortável. Mesmo sendo mãe e tendo dois exemplares em casa, sei que lidar com os filhos dos outros mexe com nossas convicções. Será que minhas táticas vão funcionar com eles também? 
Minha dica é trate crianças como pessoas normais. Não infantilize o vocabulário nem fique procurando frases muito simples pra se fazer entender. Se elas não entenderem, vão perguntar. Não subestime a inteligência infantil. Diminua apenas o seu tamanho. Se ela te olhar no olho, tanto melhor. Já será uma baita ajuda. Se a criança te surpreender com alguma pergunta impertinente ou constrangedora, lembre-se que o humor é sempre uma ótima saída com os pequenos. 
• Você sempre foi careca?

• Quando eu era bebê tinha mais cabelo! Eles estão caindo.

• De todas as partes do seu corpo? Até do...?   
Reconheça o valor da curiosidade. “Boa pergunta!“

“Adultos que sabem lidar com criança não sufocam seu novo conhecido com entusiasmo demais nem começam de imediato um interrogatório investigativo (Quantos anos você tem? Onde você estuda?). Na realidade, mantêm uma certa distância primeiro, deixando que a criança aqueça a relação, talvez descobrindo algum assunto de interesse dela ou em comum e perguntando a ela sobre isso“, diz Alfie Kohn, em Unconditional Parenting, livro que inspirou duas colunas anteriores sobre castigos e recompensas.

Os adultos que têm jeito com criança prestam atenção e escutam o outro, mesmo que ele tenha menos de um metro e trinta. O nome disso é respeito.

FONTE: Isabel Clemente
site: Revista Época

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

PLANEJAMENTO NÃO É MAGIA

A FALÁCIA DO PLANEJAMENTO

Em dado momento da sua carreira, Daniel Kahneman viu-se envolvido em um projeto do Ministério da Educação de Israel, cuja finalidade era criar uma nova disciplina no currículo universitário: Economia Comportamental.

O grupo, composto por Kahneman e seus colegas, reunia-se semanalmente e após um ano de trabalho já havia escrito alguns capítulos do livro-texto, bem como boa parte do syllabus.


Foi quando resolveram olhar para a frente – mais precisamente para o fim do projeto: cada um deveria escrever num pedaço de papel quanto tempo estimava que o projeto ainda levaria para ser concluído*.
A média apurada foi de dois anos, sendo que o menor prazo considerado foi um ano e, o maior, dois anos e meio.

Um dos integrantes do grupo já participara de outras iniciativas semelhantes e foi-lhe perguntado, então, qual a média real que ele havia observado nos casos que acompanhou. Quiseram saber, também, se algum deles não fora concluído.

As respostas chocaram o grupo: uma nova disciplina levava entre sete e dez anos para ser estruturada e cerca de 40% dos planejamentos jamais chegavam a ser finalizados.

Daniel Kahneman estava vivendo na pele um fenômeno que, mais tarde, ele próprio batizaria de falácia do planejamento. São situções nas quais decisões são tomadas sob a influência de um otimismo irreal e injustificável, em vez de uma racional avaliação de prós, contras e suas respectivas probabilidades.
Segundo Kahneman, estimativas ficam muito distantes da realidade na medida em que se aproximam demais dos melhores resultados obtidos (algo como se você estimasse seu tempo numa corrida de 100 m tomando Usain Bolt como referência) e não são confrontadas com os histórico de casos semelhantes.


Repare que, no caso em questão, o especialista no assunto também fez uma previsão completamente fora daquilo que ele mesmo tinha como parâmetro de comparação – mas que, incrivelmente, ele não levou em consideração.

O resultado disto é que empresas embarcam, muitas vezes, em projetos claramente fadados ao fracasso iludidas por um pernicioso viés otimista. Ao classificar o viés de otimismo como um dos mais viéses cognitivos mais significativos, Kahneman alerta que
“(…) muitos de nós enxergamos o mundo como mais benigno do que ele realmente é, nossos próprios atributos como mais favoráveis do que realmente são e as metas que adotamos como mais alcançáveis do que parecem ser. Tendemos, também, a exagerar nossa habilidade de prever o futuro, alimentando uma confiança demasiadamente otimista.”

Como forma de precaver-se do viés de otimismo, Kahneman toma emprestado de Gary Klein uma interessante ideia: a autópsia prévia, isto é: em vez de esperar o projeto morrer, suponha que ele morreu de fato e tente ver o que deu errado. Em suas palavras:
“Imagine que estamos um ano na frente. Implementamos o plano da forma como ele está agora. O resultado foi um desastre. Em cinco ou dez minutos, escreva uma breve história deste fracasso.”
Neste simples exercício de futurologia, você deverá imaginar que tudo o que planejou deu errado e tentar encontrar as possíveis causas. Um curioso exercício de criatividade pessimista (ou realista?), em que a ficção pode ajudar a evitar uma trágica realidade.

Em tempo: o planejamento levou oito anos para ser concluído – mas jamais foi utilizado. Alguns anos depois Daniel Kahneman recebeu um Prêmio Nobel em Economia.

* Esta é a maneira correta de se colher a opinião de um grupo sobre um assunto pontual, evitando cair na armadilha do groupthinking ou na tentação de um rápido consenso.
Texto publicado originalmente em http://www.pharmacoaching.com.br/2012/03/a-falacia-do-planejamento.html

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Fragmentos



Aproveitar o tempo! 
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite? 
Aproveitar o tempo! 
Nenhum dia sem linha... 
O trabalho honesto e superior... 
......
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?! 
....
Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino

Álvaro de Campos




quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Narcisismo dos Pais



Longe da árvore

Li o novo livro de Andrew Solomon quando foi publicado nos EUA, no fim de 2012. Para explicar por que ele é, para mim, um dos ensaios mais importantes das últimas décadas, preferi esperar a tradução em português, "Longe da Árvore - Pais, Filhos e a Busca da Identidade" (Companhia das Letras).
O título se refere ao ditado segundo o qual os frutos nunca caem longe da árvore que os produziu --ou seja, "tais pais, tais filhos". Só que, às vezes, nossos filhos nos parecem diferentes de nós: frutos caídos longe da árvore. De qualquer forma, a árvore quase sempre acha que seus frutos caíram mais longe do que ela gostaria. E, na nossa cultura, amar os filhos que são diferentes de nós não é nada óbvio.

A obra de Solomon é um extraordinário elogio da diversidade e da possibilidade de amar e respeitar a diferença, mesmo e sobretudo nos nossos filhos. Por acaso, li o livro de Solomon logo depois das tocantes e bonitas memórias de Diogo Mainardi ("A Queda", Record) sobre o amor por seu primogênito, Tito, diferente por ser portador de paralisia cerebral.

A leitura de "Longe da Árvore" ajudará qualquer pai a não transformar suas expectativas em condições de seu amor. Isso bastaria para que a obra de Solomon fosse imprescindível --para pais e para filhos. Mas há mais.
Retomo uma distinção que Solomon usa. Chamemos de identidades verticais as que são impostas ou transmitidas de geração em geração: elas são consequência da família, da tribo, da nação na qual nascemos e também das expectativas dos pais (quando elas moldarem os filhos). Chamemos de identidades horizontais as que inventamos ou às quais aderimos junto com nossos pares e coetâneos: elas são tentativas de definir quem somos por nossa conta, sem nada dever à árvore da qual caímos.

O paradoxo é o seguinte: a ideia crucial da modernidade é que as identidades verticais não constituem mais nosso destino (por exemplo, o fato de nascer nobre ou camponês não decide o lugar que o indivíduo ocupará na sociedade).
Os filhos, portanto, conhecem uma liberdade sem precedentes (viajam, mudam de país, de status, de profissão etc.), atrás do sonho moderno de "se realizarem" --e não do sonho antigo de repetirem seus antepassados. Mas acontece que esse sonho de "se realizarem" é também o dos pais, os quais, como qualquer um, só "aconteceram" pela metade (quando muito).

Consequência e conflito: os filhos deveriam correr livres atrás de seus próprios sonhos, enquanto os pais esperam e pedem que os filhos vivam para contrabalançar as frustrações da vida de seus genitores.

Será que um dia seremos capazes de um amor não narcisista pelos nossos filhos? Será que seremos capazes de querer produzir vidas por uma razão diferente da de reproduzir a nós mesmos?

Se isso acontecer um dia, será possível dizer que "Longe da Árvore" foi o primeiro indicador de uma mudança que transformou nossa cultura para sempre.
Alguns poderiam se assustar diante do tamanho da obra de Solomon, que é monumental (mais de 800 páginas). Reassegurem-se: a leitura é fascinante.
O livro é construído assim: há uma introdução, "Filho", imperdível, e uma conclusão, "Pai" (de filho para pai é o caminho que o próprio Solomon percorreu na sua vida).

No meio, há dez capítulos (que não precisam ser lidos na ordem) sobre as "diferenças" de filhos que caíram longe da árvore e como os pais lidaram com elas (surdos, anões, síndrome de Down, autismo, esquizofrenia, deficiência, [crianças-]prodígios, [filhos de] estupro, crime, transgêneros). A essa lista é necessário acrescentar gay e disléxico, que são os traços que fizeram de Solomon um diferente.

Das centenas de entrevistas nas quais ele se baseia, Solomon sai com um certo otimismo sobre a possibilidade de os pais aprenderem a amar filhos diferentes deles.

Entendo seu otimismo assim: as diferenças extremas (como as que ele contempla) derrotam o narcisismo dos pais de antemão (esses filhos nunca serão uma continuação trivial de vocês) e portanto levam à possibilidade de amar os filhos como entes separados de nós.

No dia a dia corriqueiro da relação pai-filho, o narcisismo dos pais e dos adultos produz uma falsa e incurável infantolatria: parecemos adorar as crianças, mas mal as enxergamos --apenas amamos nelas a esperança de que elas realizem nossos entediantes sonhos frustrados.

Contardo Calligaris
Jornal: Folha de SP


Ainda não comprei o livro do Adrew Solomon, mas essa é uma das várias críticas positivas que li sobre o texto. Por isso, estou postando. O segundo livro que o Calligaris recomenda, o Diogo Mainardi, eu já li e sempre recomendo.  





terça-feira, 22 de outubro de 2013

Curso de Formação em Coaching - Florianópolis





Mais informações em : MC Instituto de Coaching
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sábado, 19 de outubro de 2013

A leitura e seus efeitos


Qual romance você está lendo?

Sempre pensei que fosse sábio desconfiar de quem não lê literatura. Ler ou não ler romances é para mim um critério. Quer saber se tal político merece seu voto? Verifique se ele lê literatura. Quer escolher um psicanalista ou um psicoterapeuta? Mesma sugestão.
E, cuidado, o hábito de ler, em geral, pode ser melhor do que o de não ler, mas não me basta: o critério que vale para mim é ler especificamente literatura –ficção literária.
Você dirá que estou apenas exigindo dos outros que eles sejam parecidos comigo. E eu teria que concordar, salvo que acabo de aprender que minha confiança nos leitores de ficção literária é justificada.
Algo que eu acreditava intuitivamente foi confirmado em pesquisa que acaba de ser publicada pela revista “Science” (migre.me/gkK9J), “Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind” (ler ficção literária melhora a teoria da mente), de David C. Kidd e Emanuele Castano.

Uma explicação. Na expressão “teoria da mente”, “teoria” significa “visão” (esse é o sentido originário da palavra). Em psicologia, a “teoria da mente” é nossa capacidade de enxergar os outros e de lhes atribuir de maneira correta crenças, ideias, intenções, afetos e sentimentos.

A teoria da mente emocional é a capacidade de reconhecer o que os outros sentem e, portanto, de experimentar empatia e compaixão por eles; a teoria da mente cognitiva é a capacidade de reconhecer o que os outros pensam e sabem e, portanto, de dialogar e de negociar soluções racionais. Obviamente, enxergar o que os outros sentem e pensam é uma condição para ter uma vida social ativa e interessante.

Existem vários testes para medir nossa “teoria da mente” –os mais conhecidos são o RMET ou o DANVA, testes de interpretação da mente do outro pelo seu olhar ou pela sua expressão facial. Em geral, esses testes são usados no diagnóstico de transtornos que vão desde o isolamento autista até a inquietante indiferença ao destino dos outros da qual dão prova psicopatas e sociopatas.

Kidd e Castano aplicaram esses testes em diferentes grupos, criados a partir de uma amostra homogênea: 1) um grupo que acabava de ler trechos de ficção literária, 2) um grupo que acabava de ler trechos de não ficção, 3) um grupo que acabava de ler trechos de ficção popular, 4) um grupo que não lera nada.

Conclusão: os leitores de ficção literária enxergam melhor a complexidade do outro e, com isso, podem aumentar sua empatia e seu respeito pela diferença de seus semelhantes. Com um pouco de otimismo, seria possível apostar que ler literatura seja um jeito de se precaver contra sociopatia e psicopatia. Mais duas observações.

1) A pesquisa mede o efeito imediato da leitura de trechos literários. Não sabemos se existem efeitos cumulativos da leitura passada (hoje não tenho tempo, mas “já li muito na adolescência”): o que importa não é se você leu, mas se está lendo.

2) A pesquisa constata que a ficção popular não tem o mesmo efeito da literária. A diferença é explicada assim: a leitura de ficção literária nos mobiliza para entender a experiência das personagens.

“Como na vida real, os mundos da ficção literária são povoados por indivíduos complexos cujas vidas interiores devem ser investigadas, pois são raramente de fácil acesso.”

“Contrariamente à ficção literária, a ficção popular (…) tende a retratar o mundo e as personagens como internamente consistentes e previsíveis. Ela pode confirmar as expectativas do leitor em vez de promover o trabalho de sua teoria da mente.”

Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação por aquelas caraterísticas que foram notadas pelos melhores leitores do século 20: por ser ambíguo (William Empson), aberto (Umberto Eco) e repleto de significações secundárias (Roland Barthes).

Na hora de fechar esta coluna, na terça-feira, encontro a mesma pesquisa comentada na seleção do “New York Times” oferecida semanalmente pela Folha. A jornalista do “Times” pensou que a leitura literária, ajudando-nos a enxergar e entender os outros, facilitaria nossas entrevistas de emprego ou nossos encontros românticos.

Quanto a mim, imaginei que, na próxima vez em que eu for chamado a sabatinar um candidato, não esquecerei de perguntar: qual é o romance que você está lendo? E espero que o candidato mencione um livro que conheço, para verificar se está falando a verdade.

Contardo Calligaris
Jornal Folha de São Paulo