Longe da árvore
Li o novo livro de Andrew Solomon quando foi publicado nos EUA, no
fim de 2012. Para explicar por que ele é, para mim, um dos ensaios mais
importantes das últimas décadas, preferi esperar a tradução em português,
"Longe da Árvore - Pais, Filhos e a Busca da Identidade" (Companhia
das Letras).
O título se refere ao ditado segundo o qual os frutos nunca caem
longe da árvore que os produziu --ou seja, "tais pais, tais filhos".
Só que, às vezes, nossos filhos nos parecem diferentes de nós: frutos caídos
longe da árvore. De qualquer forma, a árvore quase sempre acha que seus frutos
caíram mais longe do que ela gostaria. E, na nossa cultura, amar os filhos que
são diferentes de nós não é nada óbvio.
A obra de Solomon é um extraordinário elogio da diversidade e da
possibilidade de amar e respeitar a diferença, mesmo e sobretudo nos nossos
filhos. Por acaso, li o livro de Solomon logo depois das tocantes e bonitas
memórias de Diogo Mainardi ("A Queda", Record) sobre o amor por seu
primogênito, Tito, diferente por ser portador de paralisia cerebral.
A leitura de "Longe da Árvore" ajudará qualquer pai a
não transformar suas expectativas em condições de seu amor. Isso bastaria para
que a obra de Solomon fosse imprescindível --para pais e para filhos. Mas há
mais.
Retomo uma distinção que Solomon usa. Chamemos de identidades
verticais as que são impostas ou transmitidas de geração em geração: elas são
consequência da família, da tribo, da nação na qual nascemos e também das
expectativas dos pais (quando elas moldarem os filhos). Chamemos de identidades
horizontais as que inventamos ou às quais aderimos junto com nossos pares e
coetâneos: elas são tentativas de definir quem somos por nossa conta, sem nada
dever à árvore da qual caímos.
O paradoxo é o seguinte: a ideia crucial da modernidade é que as
identidades verticais não constituem mais nosso destino (por exemplo, o fato de
nascer nobre ou camponês não decide o lugar que o indivíduo ocupará na
sociedade).
Os filhos, portanto, conhecem uma liberdade sem precedentes
(viajam, mudam de país, de status, de profissão etc.), atrás do sonho moderno
de "se realizarem" --e não do sonho antigo de repetirem seus
antepassados. Mas acontece que esse sonho de "se realizarem" é também
o dos pais, os quais, como qualquer um, só "aconteceram" pela metade
(quando muito).
Consequência e conflito: os filhos deveriam correr livres atrás de
seus próprios sonhos, enquanto os pais esperam e pedem que os filhos vivam para
contrabalançar as frustrações da vida de seus genitores.
Será que um dia seremos capazes de um amor não narcisista pelos
nossos filhos? Será que seremos capazes de querer produzir vidas por uma razão
diferente da de reproduzir a nós mesmos?
Se isso acontecer um dia, será possível dizer que "Longe da
Árvore" foi o primeiro indicador de uma mudança que transformou nossa
cultura para sempre.
Alguns poderiam se assustar diante do tamanho da obra de Solomon,
que é monumental (mais de 800 páginas). Reassegurem-se: a leitura é fascinante.
O livro é construído assim: há uma introdução, "Filho",
imperdível, e uma conclusão, "Pai" (de filho para pai é o caminho que
o próprio Solomon percorreu na sua vida).
No meio, há dez capítulos (que não precisam ser lidos na ordem)
sobre as "diferenças" de filhos que caíram longe da árvore e como os
pais lidaram com elas (surdos, anões, síndrome de Down, autismo, esquizofrenia,
deficiência, [crianças-]prodígios, [filhos de] estupro, crime, transgêneros). A
essa lista é necessário acrescentar gay e disléxico, que são os traços que
fizeram de Solomon um diferente.
Das centenas de entrevistas nas quais ele se baseia, Solomon sai
com um certo otimismo sobre a possibilidade de os pais aprenderem a amar filhos
diferentes deles.
Entendo seu otimismo assim: as diferenças extremas (como as que
ele contempla) derrotam o narcisismo dos pais de antemão (esses filhos nunca
serão uma continuação trivial de vocês) e portanto levam à possibilidade de amar
os filhos como entes separados de nós.
No dia a dia corriqueiro da relação pai-filho, o narcisismo dos
pais e dos adultos produz uma falsa e incurável infantolatria: parecemos adorar
as crianças, mas mal as enxergamos --apenas amamos nelas a esperança de que
elas realizem nossos entediantes sonhos frustrados.
Contardo Calligaris
Jornal: Folha de SP
Ainda não comprei o livro do Adrew Solomon, mas essa é uma das
várias críticas positivas que li sobre o texto. Por isso, estou postando. O
segundo livro que o Calligaris recomenda, o Diogo Mainardi, eu já li e sempre
recomendo.
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