A favor do tédio
Alguns livros recentes tratam dos malefícios de nossa constante
vontade de encontrar diversões. Como sugere o título de um deles, "The
Distraction Addiction", de Alex Pang (Little, Brown and Company), a
vontade de se distrair seria um vício, uma forma de dependência.
Também, desde o começo do ano, leio artigos de revista sobre
"os surpreendentes benefícios do fato de sentir tédio".
Os livros não me pareceram imperdíveis. E os artigos nas revistas
de grande circulação citam "pesquisas" por ouvir dizer. Mas tanto
faz. O conjunto manifesta um novo clima, segundo o qual a necessidade de sermos
entretidos e estimulados continuamente não tornaria nossa vida mais rica e
variada - ao contrário, é possível que essa dispersão empobreça nossa
experiência.
Já foi dito por evolucionistas que a sorte de nossa espécie foi
sua fraqueza: enquanto passávamos horas a fio escondidos e calados nos
arbustos, esperando as feras passarem, a imobilidade e o tédio forçados
produziram o surgimento da consciência, do pensamento e da fantasia. Que tal
aplicar essa hipótese no campo da educação?
O que é mais "educativo" para as crianças? A diversão?
Ou a chance de se entediar?
Umberto Eco atribui ao filósofo Benedetto Croce uma frase que ele
cita com frequência: "O primeiro dever dos jovens é o de se tornar
velhos". Esse slogan não tem como ser muito popular numa época em que o primeiro
dever dos velhos é o de eles parecerem jovens. De fato, nesta nossa época, os
adultos não ajudam os jovens a envelhecer; eles preferem mantê-los na mesma
criancice que eles desejam para si.
Há pais agentes de viagem e relações-públicas, que, a cada dia,
organizam programas "divertidíssimos" para seus rebentos. Esses pais
procuram amigos para brincadeiras coletivas e oferecem, a jato contínuo,
coquetéis de televisão, cinema, compras, videogames e até livros: qualquer
coisa para evitar que a criança conheça a solidão e o enfado. Sabe-se lá quais
pensamentos surgiriam numa mente entediada, não é?
Certo, é preciso estimular as crianças para que elas se
desenvolvam na interação com o mundo. Mas o problema é que, sem tédio maçante,
ninguém, criança ou adulto, consegue inventar para si uma vida interior. E para
que serve uma vida interior? Se forem pensamentos aos quais recorremos quando
não temos nada para fazer, não é mais simples a gente se manter ocupado e não
precisar da tal vida interior?
O problema é que há uma boa parte da vida exterior que, sem vida
interior, é totalmente insossa. Tomemos o exemplo do erotismo.
Está aberta até dia 12 de janeiro, no Metropolitan de Nova York, a
exposição "Balthus: Cats and Girls" (Balthus: gatos e meninas). O
catálogo, com o mesmo título, contém uma excelente introdução da curadora,
Sabine Rewald.
Balthus (1908-2001) pintava com frequência gatos e meninas, juntos
ou separados. Os gatos são ótimos administradores de seu tédio. Eles sabem se
divertir quando a ocasião se apresenta, mas também sabem não fazer nada. Nisso,
eles batem os cachorros, que sempre parecem aliviados quando finalmente têm
algo para fazer.
Agora, esse dom da gestão do tédio, os gatos têm em comum com as
meninas que Balthus pinta, que são todas, antes de mais nada,
entediadas.
entediadas.
As longas sessões nas quais posavam para o pintor talvez servissem
deliberadamente para produzir o tédio que Balthus queria pintar. Há as meninas
quase vencidas pelo sono no meio da leitura, há as que jogam paciência no
silêncio palpável da tarde numa casa de província francesa - todas parecem
entregues a devaneios inquietantes.
A gente pode se indignar com a diferença de idade entre Balthus e
suas modelos adolescentes, mas o fato é que os retratos das meninas são uma
extraordinária ilustração de que o tédio e a indolência são as portas que levam
aos pensamentos impuros.
Ou seja, é bem provável que a criança entediada tenha uma vida
erótica adulta mais interessante do que a criança que cresceu de joguinho em
joguinho, de amiguinho em amiguinho, de diversão em diversão.
O que me leva, aliás, a uma suspeita. Os pais que combatem o tédio
dos filhos talvez estejam combatendo possíveis "pensamentos impuros"
--videogames, filmes, amigos, tablets e futebol, tudo contra o espantalho da
masturbação, que espreita a criança entediada e solitária.
Agora, sem pensamentos impuros na criança, o que será o erotismo
do adulto no qual essa criança se tornará? Um erotismo sem vida interior,
talvez.
Contardo Calligaris
Jornal Folha de São Paulo
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