Toda ação articula-se em torno de uma escolha.
É uma da tarde, e você dirige uma caminhonete pelas ruas de São
Paulo. De repente, você esbarra num carro parado; ao lado dele, dois
motoqueiros; um dos dois enfia seu braço armado pelo vidro do motorista do
carro; o assaltante ameaça e grita, ele pode atirar a qualquer momento, quer
seja porque não estão lhe entregando o que ele pediu, quer seja porque não
gostou do que lhe foi entregue, quer seja porque, simplesmente, ele está
nervoso e a fim de matar.
Atrás de você e da cena do assalto, só buzinam os mais afastados,
que não enxergam o que está acontecendo. Os mais próximos ficam paralisados,
divididos entre o medo e a vergonha por não reagirem e por serem cidadãos de um
lugar onde isso é possível e corriqueiro.
Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois
meliantes, antes que atirem ou que fujam, ganhando, mais uma vez, dos
assaltados e de todos nós.
Você não vai acelerar. É por medo de que o assaltante evite seu
carro e acerte você com um tiro? É por preguiça de se envolver com polícia e
investigação? Ou receia que cúmplices e familiares dos criminosos se vinguem?
Tudo bem, imaginemos que seja noite funda: não há ninguém, só os
assaltantes, os assaltados e você. Ninguém verá nada. Ainda assim, você não vai
acelerar?
Talvez prevaleça em você a inibição que paralisa a muitos na hora
de machucar um semelhante, mesmo odioso. Ou talvez você queira agir
"segundo a lei". Mas você sabe que a lei contempla e admite a
"legítima defesa de terceiro"? Tudo bem, sua única obrigação jurídica
é acionar a autoridade competente: fique no seu carro e ligue para a PM, uma
viatura chegará a tempo para interromper o assalto e proteger os assaltados - não
é verdade?
Ok, você hesitou demais, um dos assaltados acaba de ser baleado.
Juridicamente, você não tem responsabilidade por não ter agido. A lei não exige
de ninguém que seja herói. Mas será que isso é verdade também da moral? Você
vai dormir tranquilo?
Outro dilema. Agora, imagine que, exatamente na mesma cena, você
seja o assaltado. A caminhonete do dilema anterior apareceu, atropelou os
assaltantes e sumiu. O bandido para quem você entregou sua bolsa está no
asfalto, numa poça de sangue. Você faz o quê? Chama uma ambulância e espera
para dar depoimento? Ou recupera o que lhe foi roubado e vai embora?
Já escrevi aqui mais de uma vez: admiro a teoria dos estágios do
pensamento moral, de Lawrence Kohlberg. Resumindo, com nosso exemplo: é inútil
querer decidir se é mais moral jogar a caminhonete para cima dos ladrões ou se
esconder atrás do volante.
O que importa é a razão de nossa escolha. Se decidirmos por medo
da punição, por conformidade ou mesmo por respeito à lei, nossa conduta será
moralmente medíocre. Se decidirmos segundo o que nos parece certo, em nosso foro
íntimo, nossa conduta -seja ela qual for- será de uma qualidade moral superior.
Mais uma coisa: Kohlberg também mostrou que a gente não melhora
moralmente à força de memorizar valores ou exemplos a seguir, mas destrinchando
dilemas e ponderando como e por que agiríamos de uma maneira ou de outra.
Os dois dilemas que acabo de expor são extraídos de um filme
excelente, que não me sai da cabeça, "Disparos", de Juliana Reis, em
cartaz desde sexta passada.
"Disparos" acontece no Rio, embora seu roteiro seja,
hoje, mais paulistano do que carioca. De qualquer forma, não perca o filme e
não fuja do debate íntimo sobre o que você faria numa situação parecida (até
porque as chances de viver uma situação parecida aumentam a cada dia).
O Senado acaba de incluir disciplinas de ética no currículo do
ensino fundamental e médio. Espero que se evite a monumental estupidez de
ensinar ética normativa, ou seja, de querer enfiar valores em nossas crianças -
goela abaixo, como se fossem partículas consagradas.
Para crianças como para adultos, "aprender" ética
significa aprimorar a disposição a pensar moralmente, ou seja, a capacidade de
debater, em nosso foro íntimo, os enigmas complexos (e, muitas vezes,
insolúveis) que a realidade nos apresenta. Como disse, essa disposição só
melhora à força de encarar dilemas.
Sem esperar o mais que provável desastre do novo curso, podemos ir
(e levar nossos adolescentes) ao cinema. "Disparos" é um filme
perfeito para pesar a complexidade da vida urbana no Brasil, ou seja, para
pensar o que significa sermos morais hoje, aqui, no lugar em que estamos
vivendo.
BY: Contardo Calligaris
Fonte: Jornal Folha de São
Paulo – 28/11/2012
Aguardamos um novo post tia!
ResponderExcluirBeijos Vi.