Transcrição do
depoimento da jornalista Laura Capriglione no debate promovido pelo Centro de
Convivência É de Lei, sobre “Mídia,
Drogas e HIV” (14/9/2012)
Eu queria agradecer o
convite e a oportunidade de estar aqui com vocês. Cabe a mim falar sobre um lado
delicado dessa história toda que é o lado da cobertura da imprensa. Eu digo que
é um lado delicado porque a imprensa, se por um lado ela joga luzes, ela também
pode muito bem, e com a melhor das intenções, reforçar o maior dos
preconceitos. (...) Essa cobertura desse evento [a operação na cracolândia] foi pra nós
(...) uma experiência extremamente reveladora do que é o universo do crack.
Digo isso porque não sei se vocês se lembram quando o crack apareceu, há 20
anos, uma das primeiras matérias que se veiculou foi na Veja, do Elio Gaspari,
muito bem escrita como sempre, e a matéria dele começava com um tuiiiimmm, e com esse “tuiiiimmm” a pessoa tava
morta, tava frita, “tuiiiimmm”
era o suposto “tuiiiimmm”
que a droga deflagrava nos sistemas neuronais e aí vinha um linguajar
supostamente científico pra dizer exatamente aquilo que o meu colega da mesa
mencionou, pra construir a ideia de uma droga que tinha alguns efeitos
devastadores, aliás a palavra devastador nunca foi tão utilizada quanto na
cobertura do crack, pra dizer o mínimo se diz que o crack é uma experiência
devastadora. Mas ele faz muito mais que isso, ele queima os neurônios – tô
citando coisas que apareceram na imprensa – ele queima os neurônios, uma
tragada vicia inevitavelmente, ele destrói a família, destrói os laços, ele
enfim desumaniza a pessoa que deixa de ser um cidadão como nós e passa a ser
uma pessoa que precisa de uma intervenção total, e essa intervenção pode ser
policial, por que não?, mas pode ser uma internação forçada, compulsória, como
a gente ouviu de novo ser mencionado agora na cobertura da cracolândia, essa
foi uma das vias que mais acolhimento tiveram... qual a saída? Internação
compulsória, isso foi defendido por autoridades, governo do estado...
Pra nós, eu que trabalho na Folha, que é aqui no Centro,
quase mergulhada na cracolândia, a gente tem cracolândia de um lado, de outro,
na frente e atrás, e pra nós, felizmente ou infelizmente, essa proximidade,
quando a gente ouvia as balas, ouvia os tiros, a redação saía, foi muito bom
porque a gente tava ali do lado, e a Folha conseguiu flagrar os tiros de
bala de borracha, as bombas de efeito moral, isso virou matéria, virou TV
Folha, virou um monte de coisa. (...) Isso foi uma experiência muito rica pros
profissionais que estavam ali envolvidos. (...) “os craqueiros são pessoas sem o menor discernimento, estão com o
cérebro queimado, a droga destruiu qualquer traço de humanidade, generosidade,
inteligência”, quem durante muito tempo teve o monopólio da fala sobre os
craqueiros foi exatamente a turma dos médicos, a turma dos psiquiatras, a turma
das clínicas, essa turma que acabou tendo o monopólio e hoje a gente pode, as
pessoas começam a perceber cada vez mais, esse discurso longe de ser científico é um discurso interessado, porque a
maior parte dessas pessoas são também donas de clínicas, donas de entidades e
são contratadas pelo poder público, são entidades que têm clínicas, convênios
com a secretaria da saúde, enfim... só que isso era um pequeno detalhe que
passava totalmente despercebido da imprensa, que entrevistava médicos que o
tempo inteiro estavam disponíveis pra falar sobre os efeitos devastadores do
crack na experiência de um dependente químico.
O que essa experiência da invasão, da disputa do território da
cracolândia, fez foi obrigar os jornalistas, que ficaram muito tempo, quase
vinte anos, no conforto dessa conversa por telefone na maior parte das vezes,
longe da cracolândia, e eu queria só lembrar quantas vezes a gente viu notícias
nos jornais, particularmente na televisão, de repórteres muito bem
intencionados, por isso eu digo que o
problema não foi falta de boas intenções, o problema é um pouquinho maior, tem
a ver com preconceito e uma série de coisas, quantas vezes a gente viu
aquela cena do carro da imprensa, do carro da televisão, sendo apedrejado pelos
craqueiros violentíssimos? A gente viu essa cena um milhão de vezes, um zilhão
de vezes, com a melhor das boas intenções. Mas ninguém parou pra se perguntar,
só que hoje a gente para pra se perguntar, por isso eu digo que foi um momento
que a gente teve de chegar perto do problema, ninguém parou pra se perguntar
por que é que aquelas pessoas apedrejavam os carros da imprensa. A maior parte
apedrejava os carros da imprensa pelo único e acho que legítimo motivo que
essas pessoas têm direito à própria imagem, tem direito a preservar a própria
imagem, coisa que não passava pela cabeça de alguém que julgava os caras
desumanos demais pra defender a própria imagem, que essas pessoas tinham esse
direito. Por que eles tinham de ser expostos, e isso não é uma prerrogativa,
diga-se de passagem, de usuários de crack, qualquer população que vive nessas
situações limites são pessoas que ficam extremamente constrangidas com essa
exposição na mídia. (...) mas essa imagem dos carros de imprensa sendo
apedrejados pelos craqueiros era a mão na luva, era perfeito pra provar a tese
que os craqueiros eram não-pessoas, eram animais, pior que animais, que a droga
tinha desumanizado esses caras e que eles não mereciam nenhuma consideração a
não ser uma intervenção total.
Os jornalistas foram pra
cracolândia (...), e tomaram um choque com o que viram lá e com as situações
que acabaram presenciando. Eu queria dizer que, entre outras coisas, como a
gente tava naquela ideia de que alguma coisa precisa ser feita pra salvar essas
pessoas de si mesmas, dessa droga que aliena as pessoas de si mesmas, logo no
começo parecia que tudo podia, a Secretaria [dizia que] com gentileza não dá
pra tratar, e ela não tava falando sozinha, ela tava dialogando com uma ideia
que a sociedade tinha dessa população. E vocês podem ter certeza que teve um
apoio enorme a essa intervenção da Secretaria, e dentro da Folha, no espaço de
comentários (...) era esse mesmo, tira todo mundo, limpa a rua.
Foi
muito importante a presença da Defensoria Pública com aquele panfletinho
simplíssimo, que falava de direitos, o cara não tem direito
de andar na rua, não tem o direito de ficar parado, de sentar na calçada?,
parecia uma coisa normal que ele não tivesse... pra se ver o grau de preconceito
que tinha, as premissas com que a gente foi pra rua eram as mais nefastas
possíveis. Bom, aí teve um jornalista da Folha que saiu andando com os
meninos pra medir quanto que esses caras tinham que andar por dia por conta
dessas abordagens da polícia e desse impedimento da polícia de que essas
pessoas ao menos sentassem. Então se
começou a andar junto com as pessoas, começou a conversar com as pessoas, e o
que a gente pode ver foi exatamente a desconstrução desses mitos que cercavam
os usuários de crack.
Eu tenho certeza que a
gente é melhor hoje do que era antes, por incrível que pareça, se essa
cobertura, se essa guerra insana que a polícia, que o governo do estado, que a
prefeitura moveram, insana mesmo porque a gente vê que os efeitos disso foram
simplesmente uma espécie de castigo a essa população que já é tão castigada
pela vida, mas um segundo efeito foi
aproximar a gente de uma realidade que a gente ignorava solenemente. Porque a
gente tava contaminada por esse discurso médico.
Vou dar
alguns exemplos, são coisas bestas, bobas, agora recentemente a TV Folha fez
uma matéria, a Folha foi atrás de uma velhinha que tava procurando a
Desirée, que tava grávida, ela virou personagem porque estava grávida e tava na
cracolândia e a sogra dela queria que ela voltasse pra casa porque a Desirée
tava ali naquela vida louca. A Desirée é uma das que tá presa, acusada de
tráfico, e teve o filho na cadeia. Muito tempo depois, agora, ela teve o filho,
ela tá na cadeia, não tá usando crack, tá linda, tá maravilhosa. Fizeram um TV
Folha com a Desirée (...), ela tá com o filho e quer continuar com o filho. Quando o pessoal da TV
Folha tava editando o material, veio uma menina muito legal e perguntou: Laura,
por que vai sair uma matéria dessas agora, pra pegar e mostrar o quê, isso
parece novela do SBT, pra que serve essa matéria?
Bom, quando a gente tava fazendo matéria sobre as mães do crack eu fui até
os conselhos tutelares, a pauta foi encaminhada com uma única razão,
coitadinhas das crianças que são geradas e nascem numa situação como essa. O
poder público tem que tirar essas crianças das mães, o objetivo da pauta era
esse. Tem que tirar essas crianças dessa situação absurda e tal. Fui lá no
conselho tutelar, qual a posição do conselho tutelar? Tira, tira já, tira já! A
posição do conselho tutelar daqui, da Praça da República, é tirar já as
crianças dessa situação de risco que as crianças não têm nada a ver com a vida
da mãe, não sei que. Eu vou falar francamente que achei que não era tão louco
isso, não era tão louca essa posição, que de repente podia até ser, e de repente apareceu na minha frente uma
mulher dependente de crack, que não era mais dependente de crack, que tava
livre, e que disse, olha, eu só saí do crack por causa do meu filho, a minha
única ponte com a vida foi meu filho. Se eu perdesse naquela hora o meu
filho eu provavelmente não saía nunca mais. Bom, não sei se não saía mais ou não,
mas tornou muito mais difícil aquela equação, não podia ser mais simplesmente
assim, a mulher tá no crack, arranca o filho dela. O caso da Desirrée, por mais
que parecesse uma novela do SBT, mostrava uma outra coisa, que não era uma via
de mão única, que precisa ser visto a situação particular de cada uma das
mulheres, não pode ser uma norma geral, você tinha que olhar praquele ser humano,
não podia ser uma norma tudo que se impusesse pra supostamente salvar a
criança. O que começou a acontecer, e é isso que eu queria dizer pra encerrar, aquilo que antes tava tudo muito claro, pra
todo jornalista: o craqueiro era um bicho, o filho do craqueiro ou da craqueira
tinha que ser arrancado deles, a internação compulsória a gente não gosta muito
disso mas também pode mesmo ser a única saída então vamos nessa – pode ser,
não é a única saída –, a gente teve de
deixar de lado isso pra começar olhar pra cada um daqueles seres humanos
sofridos de uma outra maneira.
Eu acho
que a gente errou muito e ainda vai errar muito também. Mas eu acho que aquela
experiência da cracolândia, às vezes a gente era, junto com a Defensoria, os
únicos que estavam ali, pra falar com eles, pra ouvir as reclamações deles, pra flagrar a viatura da polícia passando
duas vezes em cima da cabeça dum menino que foi atropelado numa dessas
abordagens (...), de fato a gente teve de começar a se relacionar com uma
gente que a gente desconhecia completamente. Eu acho que as coberturas de crack tendem a melhorar, tendem a ser
menos preconceituosas, mas eu queria dizer também que esse contradiscurso
médico em relação a essa posição que é a favor da internação, que só com drogas
pesadas... isso aí precisa melhorar muito, essa comunicação precisa melhorar
muito, desse outro lado, o outro jeito de lidar com a coisa, porque de novo: os
adeptos dessas medidas totais eles estão sempre disponíveis, se você ligar pra
eles à meia-noite e meia eles atendem o telefone e falam, olha, os efeitos são
devastadores, e fazem aquela cara: de-vas-ta-dores,
e tudo bem, e a gente escreve, devastadores... é preciso que o outro
discurso seja feito também, que outras experiências sejam mostradas. Por
exemplo, esse vídeo aí [mostrado pela Defensoria], com esse cara aí
falando, é incrível, se queimou os neurônios desse menino e ele falando desse
jeito, eu tô querendo também esse negócio... (risos) eu fui numa clínica que
era mantida em São Bernardo que aplica esse princípio dos doze passos e que é
de um dos médicos mais disponíveis pra dar entrevista, falando que a única
saída é a internação, não sei quê. Bom, aí tinha nessa clínica tratava de
dependência de álcool e drogas então tinha álcool e o resto tudo era crack ali.
E tava todo mundo sem nada, sem fumar, sem nada, e teve uma mesa-redonda, todo
mundo falando... A vivacidade daqueles caras acabou com qualquer ideia que eu
tivesse sobre esses efeitos arrasadores, o curto-circuito neuronal, pega fogo
no cérebro e aquela coisa toda, acabou, eu vi que a gente precisava aprender
tudo de novo sobre crack.
Fonte: Observatório da Imprensa
21/11/2012