Os textos do psicanalista Contardo Calligaris propõem discussões sobre
a questão da maioridade jurídica, numa perspectiva de análise que ultrapassa os
clichês do discurso politicamente correto.
Jovens Delinquentes
Na noite de terça-feira passada (dia 9), em São Paulo, Victor Hugo
Deppman, estudante de 19 anos, foi assassinado. As câmeras mostram que ele
entregou seu celular, e o assaltante o matou sem razão, com um tiro na cabeça.
O criminoso se entregou à polícia declarando que faltavam dois
dias para ele completar 18 anos. Com isso, pelo ECA (Estatuto da Criança e do
Adolescente), aos 20 anos e 11 meses no máximo, ele voltará a circular. A gente
não pode nem deixar anotado o nome do assassino, para mantê-lo afastado de
nossas vidas futuras: por ele ser menor, seu anonimato é preservado.
É assim que protegemos o futuro do criminoso, para que, uma vez
regenerado pela mágica de três anos de internação (alguém acredita?), ele possa
facilmente reintegrar a sociedade e ser um cidadão exemplar, nosso vizinho.
Obviamente, nos últimos dias, multiplicaram-se os pedidos de
revisão do próprio ECA. Marcos Augusto Gonçalves (na Folha de segunda) observou que, na boca dos
políticos, esses pedidos escondem décadas de descaso em matéria de segurança
pública. Concordo. Mas, como não sou político, não vou deixar de discutir, mais
uma vez, o estatuto do menor.
Por exemplo, sou a favor de baixar a maioridade penal,
drasticamente, como acontece no Reino Unido, no Canadá, na Austrália, na Índia,
nos Estados Unidos etc. --sendo que, na maioria desses lugares, o juiz tem a
autonomia para decidir por qual crime um menor de 12 ou dez anos será, eventualmente,
julgado como adulto.
Hélio Schwartsman (na página 2 da Folha de sexta passada) aconselhou
prudência: seria melhor não "legislar sob forte impacto emocional" e,
sobretudo agora, confiar apenas nas "considerações racionais". Ele
quase me convenceu, mas...
1) Penso isso há muito tempo.
2) Se deixássemos de agir sob impacto emocional, nunca nada
mudaria. Por exemplo, o conselho de esperar para que as emoções esfriem é o
argumento dos fabricantes de armas a cada vez que, nos EUA, um exterminador
invade uma escola e o Congresso propõe leis de controle das armas. Os
fabricantes de armas querem que esperemos para quê? Pois é, para que a gente se
esqueça e se desmobilize.
3) Conheço só uma consideração racional a favor da maioridade
penal aos 18 anos, e ela não é boa: o córtex pré-frontal (zona do cérebro que
controla os impulsos) não está totalmente desenvolvido na infância e na
adolescência.
Tudo bem, se aceitarmos essa consideração, deveríamos aumentar
seriamente a maioridade penal, pois o córtex pré-frontal se desenvolve até os
25 anos ou além. Além disso, deveríamos julgar como menores todos os adultos
impulsivos, que nunca desenvolveram um córtex pré-frontal
"satisfatório".
4) As outras "considerações racionais" (que deveriam
prevalecer sobre o impacto das emoções) são apenas disfarces de emoções
especificamente modernas que, à força de serem compartilhadas, se tornaram
chavões ideológicos.
Três deles são corolários de nossa "infantolatria", ou
seja, da paixão narcisista que nos faz venerar crianças e jovens porque, graças
a eles, esperamos continuar presentes no mundo depois de nossa morte.
Primeiro, queremos que as crianças nos apareçam como querubins
felizes como nós nunca fomos e nunca seremos. Por isso, preferimos imaginar que
os jovens sejam naturalmente bons. Quando eles forem maus, atribuímos a culpa à
sociedade e a nós mesmos. Portanto, não podemos puni-los, mas devemos, isso
sim, nos punir.
Tendo a pensar o contrário: as crianças podem ser simpáticas, mas
são más (briguentas, possessivas, invejosas, mentirosas, ingratas etc.); às
vezes, elas melhoram crescendo, ou seja, a cultura pode civilizá-las (ou
piorá-las, claro).
Segundo, adoramos acreditar que sempre podemos mudar (para melhor,
claro): apostamos que a liberdade do indivíduo permita qualquer reviravolta
-até a salvação eterna pelo arrependimento na hora da morte. A possibilidade
de os criminosos (ainda mais jovens) se redimirem confirma nossa crença
querida.
Terceiro, acreditamos também na fábula da reciprocidade amorosa:
quem ama será amado. Se forem bem tratados e se sentirem amados e respeitados,
os jovens se emendarão. É só confiar neles, deixá-los impunes e lhes oferecer
castiçais de prata, como o padre que presenteia Jean Valjean.
Meus amigos, "Les Misérables" é lindo e comovedor, mas é
um romance, ok? Na outra noite, no bairro do Belém, teria sido melhor que
aparecesse Javert.
Contardo Calligaris
Fonte: Site Jornal Folha de São Paulo
Irresponsabilidade
A coluna da semana passada tratava da maioridade penal. Eu disse
que sou a favor de considerar que, nos crimes mais graves (sobretudo contra a
pessoa), os jovens sejam responsáveis pelos seus atos.
A partir de que idade? Talvez um juiz ou uma corte especial possam
decidir, em cada circunstância, quando um jovem deve ser julgado como adulto ou
não.
A coluna suscitou um grande número de comentários, pelos quais
agradeço e aos quais não terei como responder individualmente. Tento resumir
algumas objeções, organizando-as em quatro eixos:
1) A redução da maioridade penal não vai resolver o problema da
violência.
Concordo: em geral, a severidade das penas não produz o efeito
mágico de estancar a violência e o crime. Em compensação, a impunidade, ela
sim, autoriza o crime e seu crescimento. Mas tanto faz: o que importa é que a
violência criminosa baixa quando sobem não tanto as penas quanto a inclusão
social e o sentimento de pertencermos todos a uma mesma comunidade de destino.
Desse ponto de vista, no máximo, a redução da maioridade penal
faria que menos adolescentes fossem arregimentados pelo tráfico --mas nem isso
é uma certeza.
2) Então, para que serve a proposta de reduzir a maioridade penal?
A Justiça e o sistema penitenciário sonham em amedrontar e
dissuadir do crime. Também eles sonham com a reabilitação dos criminosos
condenados. Agora, mais prosaicamente, eles têm a tarefa (menos gloriosa) de
punir os criminosos de forma que a sociedade se sinta vingada e que, portanto,
as vítimas não inaugurem ciclos de vendetas privadas.
A questão da maioridade penal se coloca relativamente a essa
última tarefa da Justiça: podemos e devemos punir os jovens da mesma forma que
os adultos?
3) Sobretudo, no caso dos jovens, não deveríamos querer que eles
sejam reabilitados em vez de punidos? Para que encarcerar os jovens se sabemos
que a detenção será uma escola do crime e não um lugar onde seria preparada sua
reinserção social?
O sistema penitenciário moderno é paradoxal: nele, tanto para os
jovens quanto para os adultos, a vontade de punir coexiste e rivaliza com a
vontade de reeducar. Esse conflito de intenções talvez não seja uma falha, mas
a propriedade essencial do sistema.
Nota: à vista do fracasso crônico de reabilitação e reinserção é
possível pensar que a intenção de reeducar seja sobretudo o álibi necessário de
uma punição que se envergonha de si mesma. Ou seja, queremos reeducar (e nunca
conseguimos) porque nos envergonhamos de estarmos "ainda" punindo os
criminosos. Gostaria de ter o tempo de reler "Vigiar e Punir", de
Michel Foucault, pensando nisso.
4) A redução da maioridade penal significaria encher as cadeias de
crianças pobres.
Em Brasília, 16 anos atrás, cinco jovens de classe média
assassinaram barbaramente um índio, colocando fogo em seu corpo. Eles se
desculparam dizendo, aliás, que não sabiam que era um índio, achavam que fosse
um mendigo.
Graças a seu privilégio social, quatro desses jovens, condenados,
cumpriram sua pena estudando e trabalhando fora da prisão. O quinto, que tinha
17 anos na época, ficou três meses num centro de reabilitação e só. Eu acho que
ele deveria ter sido julgado como adulto.
Mais uma coisa. A coluna da semana passada queria abordar um
problema mais amplo do que a simples maioridade penal. Explico.
Uma das grandes novidades de nossa cultura é que ela promove a
obrigação de cada um responder por suas ações. Talvez por isso mesmo, para
descansarmos um pouco de tamanho encargo, um dos grandes sonhos contemporâneos
seja a irresponsabilidade.
É assim que nos tornamos mestres nas explicações que valem como
desculpas.
Os assassinos de Brasília passearam demais pelos shoppings da
capital e foram mimados pelos pais, e o assassino de Victor Hugo Deppman talvez
tenha crescido em algum tipo de favela. Sempre há um trauma, um abuso passado,
que "explica" e que serve para transferir a culpa.
Ao mesmo tempo, somos uma cultura "infantólatra", ou
seja, que idealiza e venera as crianças como crianças. Ou seja, amamos vê-las
sem nenhum dos pesos que castigam a vida adulta.
No sonho de irresponsabilidade que mencionei antes, esses dois
traços de nossa cultura se combinam assim: 1) as crianças são todas querubins
irresponsáveis e 2) a história da nossa infância nos torna irresponsáveis
quando adultos. Que maravilha.
Contardo Calligaris
Fonte Site: Jornal Folha de São Paulo
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