No texto abaixo, o psicanalista
Contardo Calligaris revela o quanto, para a sociedade contemporânea, o ato sexual
é considerado obsceno e, portanto, deve ser reprimido em nome dos bons
costumes.
Mas, em uma sociedade em
que a indústria da pornografia fatura milhões, obsceno não seria os nossos
falsos pudores?
Sex and the city
Numa madrugada de inverno
dos anos 1960, em Milão, um jovem casal estava num carro estacionado numa
praça. Dez minutos foram suficientes para embaçar os vidros e esquentar os
corpos.
Dois guardas notaram que o
carro subia e descia com movimentos "suspeitos". Eles gritaram
"Polícia!" e mandaram abrir. O casal, intimidado, obedeceu, revelando
seus corpos nus ainda enroscados. Os guardas autuaram a ambos por atentado ao
pudor.
Um ano depois, os jovens
foram inocentados: o juiz reconheceu que eles só se mostraram porque os guardas
mandaram abrir o carro --ninguém atentara ao pudor de ninguém.
Com amigos e amigas,
decidimos zombar da polícia e dos cidadãos bem-pensantes (os quais, em cartas
aos jornais, tinham manifestado sua indignação). Era de novo inverno;
estacionávamos nossos carros, não de noite em lugares ermos, mas de dia, nas
ruas mais frequentadas.
Assim que os vidros
estivessem embaçados, era um exagero de sacudidas, de modo que ninguém
duvidasse que, lá dentro, a gente fazia a festa. Infelizmente, nenhum guarda
nunca bateu nos vidros de nossos carros trêmulos e protestatórios.
Pensei nessa história na
sexta passada, quando li a ótima reportagem de Roberto de Oliveira, em
"Cotidiano" (Folha, 7 de junho): uma inquilina do edifício
Copan, glória de São Paulo, emprestou seus aposentos para um casal de amigos
cariocas. Na noite do dia 27, o casal subiu pelo elevador até o último andar e
se engajou nas escadas externas. Um segurança viu esse movimento pelas câmeras
e foi atrás, até encontrar o casal no ato (sexual, claro).
O síndico do condomínio
multou a inquilina (R$ 678) --por escolher "mal" seus amigos?-- e
agora esbraveja que se tratou de um atentado ao pudor. Mas ao pudor de quem? Se
o segurança (que imagino que seja maior de idade) "foi atrás", é
porque estava a fim de dar uma espiadinha, suponho.
Claro, haverá um
carrancudo para perguntar: não podiam ir para seu apartamento e se deitar na
cama? Pois é, não, não podiam. Ou melhor, podiam, mas deviam achar que seria
muito mais chato do que transar com a vista de São Paulo, o ar frio, a sensação
de estar fazendo algo inusitado, a fantasia de serem vistos de alguma janela do
Terraço Itália e, enfim, o risco de serem surpreendidos pelo segurança do
prédio, como aconteceu.
Somos um pouco diferentes
dos outros mamíferos. O cheiro do sexo oposto não é suficiente para nos
excitar; precisamos recorrer a fantasias sexuais --sem isso, nada ou pouco
acontece. E, se você acha que não recorre a fantasia alguma, isso significa
apenas que você não sabe a quais fantasias recorre.
O que é extraordinário não
é que um casal transe nas escadas externas do Copan. O extraordinário é que
tantas pessoas transem (ou digam que transam) sempre nas suas camas.
Essa é uma opinião
excêntrica de psicanalista? Tomemos o caso do risco: dois grupos parecidos
atravessam um precipício por pontes diferentes, um passa por uma sólida ponte
de alvenaria, e o outro, por uma ponte de cordas. Na chegada do outro lado,
quem está mais receptivo para sexo? Pois é, são os da ponte estilo Indiana
Jones.
O síndico do Copan
declarou inicialmente que o ato era "depreciativo". Que cada um
escreva sua lista das coisas que depreciam nossa vida. Na minha lista, há
corrupção, violência, insegurança, incompetência, intolerância, estupidez são
as coisas que atentam cada dia ao meu pudor. Um casal transando não está entre
as coisas que depreciam meu dia, mas entre as que lhe dão valor.
A vítima do Copan criou
uma conta no vakinha.com.br, pedindo ajuda para pagar a multa. Quis contribuir
ao pagamento da multa, que me parece injusta. Infelizmente, a conta foi apagada
(talvez por causa dos comentários bestas e agressivos que ela recebeu).
O ministro da Saúde,
Alexandre Padilha, tirou do ar uma ação de seu ministério voltada para as
prostitutas (e demitiu o responsável pela campanha), porque ele se escandalizou
com a frase "Eu sou feliz sendo prostituta", que ele substituiu por
"Sem vergonha de usar camisinha" (que ele deve ter complementado mentalmente:
"mas com vergonha de ser prostituta"). O ministro poderia ser
candidato a síndico do edifício Copan.
Caro ministro Padilha,
antes de demitir mais colaboradores competentes, dê uma lida: Gabriela Silva
Leite, "Eu Mulher da Vida" (Rosa dos Tempos), "Filha, Mãe, Avó e
Puta" (Objetiva) e (um pouco mais complexo) Eliana dos Reis Calligaris,
"Prostituição - O Eterno Feminino" (Escuta).
Contardo
Calligaris
Fonte:
Site Jornal Folha de São Paulo
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