Comportamentos repetidos por várias gerações acabam fazendo
parte da cultura. Na maior parte do tempo, envolvidos no automatismo da
repetição, não temos tempo para questionar os efeitos que eles causam na construção
de nossa subjetividade. O texto a seguir, é um ótimo momento para pensar e
questionar o “perfume” romântico da gentileza masculina.
Simpático à causa feminista, aparente modelo de pai e marido, o
presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, viveu seu dia de “brucutu” há
algumas semanas ao, por incrível que pareça, elogiar uma mulher. Na posse da
nova procuradora-geral Kamala Harris, Obama não resistiu e soltou o galanteio:
“É, de longe, a mais bela procuradora-geral”, disse. Harris sorriu lisonjeada,
mas o presidente foi pego no laço pelas feministas, que o acusaram de
prejudicar a almejada igualdade dos gêneros no trabalho quando destacou um
atributo físico da procuradora. Pasmem, senhores, mas o cavalheirismo está
deixando de ser unanimidade.
O termo machismo ou sexismo
benevolente foi utilizado pela primeira vez em 1996, pela dupla de psicólogos
norte-americanos Peter Glick e Susan Fiske, mas voltou à baila nos últimos anos
a partir de novos estudos dedicados inteiramente ao tema surgidos em vários
países. Em dois dos trabalhos mais conhecidos, a pesquisadora alemã Julia
Becker, da Universidade de Marburg, e sua colega Janet Swim, da Universidade da
Pensilvânia, tentam demonstrar como ações masculinas à primeira vista
inofensivas, como abrir portas, carregar sacolas ou pagar a conta no
restaurante podem esconder a noção subliminar de que a mulher é fraca e
incapaz.
Obviamente a reação mais feroz partiu
dos homens. Artigos com títulos como “As feministas querem matar o
cavalheirismo” pipocaram na internet em diversos idiomas. Até mulheres
apareceram fazendo o contraponto, apontando certo exagero na teoria. Em se
tratando delas, porém, foi uma crítica conectada com o conservadorismo. O Fórum
Independente de Mulheres dos EUA, um grupo anti-feminista, acusou o atual
feminismo de ser “misógino” e de querer ridicularizar as mulheres. No Arizona,
uma organização conservadora de universitárias chegou a organizar um campeonato
de cavalheirismo entre os estudantes, com premiação e tudo. Peter Glick, o
autor do estudo original, veio a público para esclarecer que o cavalheirismo
não é sempre inapropriado, mas é preciso saber “não cruzar a linha”.
Mas qual é exatamente a linha a ser
cruzada? Por que o outrora simpático cavalheirismo seria, no fundo, prejudicial
às mulheres? No Brasil, uma das vozes que tem se destacado na oposição ferrenha
ao cavalheirismo é a da psicanalista Regina Navarro Lins, autora de artigos em
que desanca um suposto excesso de rapapés dos homens no momento de fazer a
corte. No recente O cavalheirismo é nocivo às mulheres, Navarro
Lins questiona: “Que tipo de homem deseja proteger uma mulher? Certamente não
seria um que a vê como uma igual, que a encara como um par. Mas aquele que se
sente superior a ela.”
Por proteger, entenda-se oferecer o
braço ao cruzar a rua, por exemplo, ou puxar a cadeira para a pretendente em um
restaurante. “Jamais vai passar pela cabeça de um homem que não é
machista a ideia de se levantar para puxar a cadeira para uma mulher. Isso não
existe”, disse a psicanalista a CartaCapital. “Quem se levanta está ainda
submetido a uma mentalidade que acha que a mulher é incapaz. Mesmo que seja
inconsciente, está.”
Pode até soar absurdo para os homens,
mas o discurso da psicanalista ecoa entre jovens mulheres interessadas em temas
feministas. “O cavalheirismo é uma forma de submissão que o patriarcado
machista encontrou mais eficaz do que o machismo literal a que a gente está
acostumada. O sexismo benevolente é muito mais sutil e cotidiano”, dispara
Bianca Andrade, estudante de Psicologia de 22 anos de Natal, Rio Grande do
Norte. “Para que abrir uma porta que eu sou capaz de abrir sozinha? É um
romantismo falso, relacionado à ideia de que a mulher necessita de um homem
para sobreviver.”
“De que adianta ajudar com as
compras, se não ajuda a lavar a louça? Abrir a porta mas não fazer a faxina?”,
provoca a socióloga Tica Moreno, 29 anos, membro da Marcha Mundial de Mulheres,
que alerta para a possibilidade, aventada pelas feministas, de que o cavalheiro
seja o outro lado do agressor, assim como seria uma face disfarçada do
machismo. “Ser cavalheiro não significa que o cara será gente boa, mesmo porque
o cavalheirismo é no espaço público e a violência, no privado.”
A psicóloga alemã Julia Becker
reforça a controversa ideia de que o cavalheiro, como o médico e o monstro,
pode esconder com amabilidades um alterego tenebroso. “Homens que endossam o
sexismo hostil também podem endossar o benevolente. Se uma mulher decide
confrontar o machismo, ela provavelmente está sujeita a experimentar o hostil”,
defende. Becker enumera outros insuspeitos efeitos adversos do cavalheirismo:
prejudica a performance cognitiva feminina; faz a mulher esperar pelo príncipe
encantado em vez de perseguir os próprios objetivos; aumenta a crença de que a
sociedade é justa; desmotiva as mulheres a se engajarem em ações pela igualdade
de gêneros.
“O principal problema do machismo
benevolente é que as mulheres são tratadas como criaturas maravilhosas, mas
também como incompetentes”, explica a psicóloga. Ela refuta com veemência as
acusações de que o feminismo estaria matando o cavalheirismo. “Estes argumentos
também são machistas. O romance sem cavalheirismo, que subordina às mulheres ao
homem, pode levar a um relacionamento muito mais satisfatório”. Pergunto a
Julia se seu marido não reclama de ela rejeitar ser tratada com cavalheirismo,
e ela responde: “Atualmente meu marido fica em casa, cuidando das crianças,
enquanto eu trabalho.”
Uma das questões que incomodam as
feministas é o sexismo benevolente no ambiente de trabalho: aquelas ofertas,
“beirando o assédio”, que os homens fazem para ajudar as colegas do sexo
feminino (sobretudo as mais atraentes) em tarefas prosaicas, partindo de
estereótipos como “elas não sabem lidar com computadores”. O problema, apontam,
é que, se as mulheres recusam, são tidas como “frias”, por um lado, embora
competentes por outro. Se aceitam a oferta, no entanto, são carimbadas como
“afáveis”, porém ineptas. O mesmo não acontece quando é um homem a rejeitar o
auxílio.
No cotidiano das relações amorosas, a
ação cavalheiresca mais execrada pelas feministas é quando os parceiros sacam a
carteira para pagar a conta do restaurante após um jantar romântico, em vez de
rachar a despesa, como preferem. Oferecer-se para pagar a conta embutiria certa
sensação de superioridade por parte do homem –e por trás da atitude
aparentemente inocente de pagar a conta no restaurante estaria o fato incômodo
e persistente de que as mulheres ganham menos do que os homens, inclusive
quando ocupam as mesmas posições no trabalho.
“Já tive brigas enormes na hora que
vem a conta. Para começar, o garçom entrega direto para o homem”, diz Carol
Peters, 21 anos, estudante de Letras da USP e integrante do setorial de
mulheres do PSOL. “Os homens não entendem porque é importante para a mulher
pagar a conta. Se um dia eles pagam, tudo bem, mas quando a gente quer devolver
a gentileza, não aceitam. Parece que isso mexe com a virilidade deles. Aliás,
essa noção de virilidade, de que o homem tem que ser viril, não é positiva.
Deve ser desconstruída também.” Opa.
Nos anos 1990, Camille Paglia comprou
briga com o movimento feminista ao defender as diferenças entre os gêneros pronunciando
frases como: “O sexo entre os dois sexos é bom porque as mulheres e os homens
são diferentes. Nós queremos apenas direitos iguais na sociedade, não queremos
que os homens sejam como as mulheres.” Hoje, em dia, porém, o discurso
dominante é o da diluição das diferenças até um ponto que, como acredita Regina
Navarro Lins, em 30 ou 40 anos toda a humanidade será bissexual. “Masculino e
feminino não existem, isso está acabando”, defende. “Essa divisão foi forjada e
aprisionou ambos os sexos.”
Os homens, é claro, não concordam nem
um pouco. “A resposta a essa postura das mulheres é esse homem mais feminino,
mais sensível, mais dependente, que não sei se está agradando por aí”, desdenha
o jornalista e músico Marvio dos Anjos, 34 anos, que escreve sobre
relacionamentos em um blog. “Há mulheres que acreditam tanto no feminismo que
passam a psicanalisar todo e qualquer ato que o homem faça a seu respeito. E
aí, tudo que se pretende carinho passa por agressão e dominação. É como dormir
com o inimigo”, critica. “Não se pode hiper-racionalizar as relações, isso é
negar a própria humanidade.”
Cavalheiro assumido, “nota 9″ na
escala segundo ele próprio, do tipo que puxa a cadeira e abre a porta, o
escritor Xico Sá, autor de Modos de Macho & Modinhas de Fêmea (Record),
acha que pode, sim, existir um verniz de machismo disfarçado aí. “Mas ver como
negativos os bons modos é pura paranóia delirante. Hoje em dia vejo os homens,
principalmente os mais jovens, tratando as meninas como se fossem ‘manos’. Não
tenho o direito de tratar bem uma mulher?”
Xico acha que, de fato, as meninas
andam rejeitando o cavalheirismo e que o homem está meio perdido diante das
reações delas. Já criaram confusão com ele, por exemplo, ao se antecipar para
pagar a conta, mas diz que não vai mudar o estilo por causa disso. “Um
cavalheiro convicto não abandona seus gestos, sob pena de sentir-se um tosco,
grosseiro.” Pergunto se é gentil com os homens. “Também. O que muda é que no
código do nosso faroeste masculino às vezes xingar o amigo com um palavrão, por
exemplo, significa um ato de ternura.” E o que você faria se uma mulher
dissesse “vai abrir a porta para sua mãe”? “Diria: ‘Perdão pelos bons modos,
minha querida, passar bem’”.
“Não é preciso abrir porta para
cortejar uma mulher. Não é isso que elas querem, não é o que estão buscando”,
defende o escritor Alex Castro, do blog Papo de Homem, autor
de vários textos onde condena o cavalheirismo e uma das raras vozes masculinas
em favor da tese do “sexismo benevolente”. Segundo Alex, não dá para
generalizar o que “as mulheres” querem. “É preciso descobrir o que a mulher que
você deseja quer, isso sim”, defende, e diz que é ótimo que o homem esteja
confuso. “Ao recusar o cavalheirismo, a mulher está negando uma narrativa
milenar, de um grupo dominante. Para os homens, estar em dúvida é um excelente
começo. É melhor do que ter certezas.”
Há um aspecto, no entanto, que homens
e mulheres parecem ignorar neste debate e que vai além de feminismo e machismo,
de gentilezas e cavalheirismos: e se abrir portas, puxar a cadeira e pagar a
conta para uma “dama” for apenas algo datado, que se tornou simplesmente
cafona?
By: Cynara Menezes
(Reportagem originalmente publicada
na revista CartaCapital)
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