quinta-feira, 6 de junho de 2013

Gentileza Masculina ou Machismo Benevolente?




Comportamentos repetidos por várias gerações acabam fazendo parte da cultura. Na maior parte do tempo, envolvidos no automatismo da repetição, não temos tempo para questionar os efeitos que eles causam na construção de nossa subjetividade. O texto a seguir, é um ótimo momento para pensar e questionar o “perfume” romântico da gentileza masculina.



Simpático à causa feminista, aparente modelo de pai e marido, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, viveu seu dia de “brucutu” há algumas semanas ao, por incrível que pareça, elogiar uma mulher. Na posse da nova procuradora-geral Kamala Harris, Obama não resistiu e soltou o galanteio: “É, de longe, a mais bela procuradora-geral”, disse. Harris sorriu lisonjeada, mas o presidente foi pego no laço pelas feministas, que o acusaram de prejudicar a almejada igualdade dos gêneros no trabalho quando destacou um atributo físico da procuradora. Pasmem, senhores, mas o cavalheirismo está deixando de ser unanimidade.

Mais de 50 anos após o início do movimento de liberação feminina e do advento da pílula anticoncepcional, as feministas agora lutam pelo direito de não serem tratadas tão bem assim. Ou, pelo menos, não de uma forma particularmente dirigida ao gênero feminino, o que ocultaria, defendem, uma condição de superioridade de quem a pratica, o homem. Rejeitam o cavalheirismo como uma forma disfarçada, “benevolente”, de machismo, mas sem abrir mão da gentileza no trato. A diferença fundamental estaria em que o homem gentil é gentil com homens e mulheres, e o cavalheiro, apenas com as mulheres. Obama seria capaz de fazer a mesura se fosse um procurador bonitão? Eis a questão.

O termo machismo ou sexismo benevolente foi utilizado pela primeira vez em 1996, pela dupla de psicólogos norte-americanos Peter Glick e Susan Fiske, mas voltou à baila nos últimos anos a partir de novos estudos dedicados inteiramente ao tema surgidos em vários países. Em dois dos trabalhos mais conhecidos, a pesquisadora alemã Julia Becker, da Universidade de Marburg, e sua colega Janet Swim, da Universidade da Pensilvânia, tentam demonstrar como ações masculinas à primeira vista inofensivas, como abrir portas, carregar sacolas ou pagar a conta no restaurante podem esconder a noção subliminar de que a mulher é fraca e incapaz.

Obviamente a reação mais feroz partiu dos homens. Artigos com títulos como “As feministas querem matar o cavalheirismo” pipocaram na internet em diversos idiomas. Até mulheres apareceram fazendo o contraponto, apontando certo exagero na teoria. Em se tratando delas, porém, foi uma crítica conectada com o conservadorismo. O Fórum Independente de Mulheres dos EUA, um grupo anti-feminista, acusou o atual feminismo de ser “misógino” e de querer ridicularizar as mulheres. No Arizona, uma organização conservadora de universitárias chegou a organizar um campeonato de cavalheirismo entre os estudantes, com premiação e tudo. Peter Glick, o autor do estudo original, veio a público para esclarecer que o cavalheirismo não é sempre inapropriado, mas é preciso saber “não cruzar a linha”.

Mas qual é exatamente a linha a ser cruzada? Por que o outrora simpático cavalheirismo seria, no fundo, prejudicial às mulheres? No Brasil, uma das vozes que tem se destacado na oposição ferrenha ao cavalheirismo é a da psicanalista Regina Navarro Lins, autora de artigos em que desanca um suposto excesso de rapapés dos homens no momento de fazer a corte. No recente O cavalheirismo é nocivo às mulheres, Navarro Lins questiona: “Que tipo de homem deseja proteger uma mulher? Certamente não seria um que a vê como uma igual, que a encara como um par. Mas aquele que se sente superior a ela.”

Por proteger, entenda-se oferecer o braço ao cruzar a rua, por exemplo, ou puxar a cadeira para a pretendente em um restaurante.  “Jamais vai passar pela cabeça de um homem que não é machista a ideia de se levantar para puxar a cadeira para uma mulher. Isso não existe”, disse a psicanalista a CartaCapital. “Quem se levanta está ainda submetido a uma mentalidade que acha que a mulher é incapaz. Mesmo que seja inconsciente, está.”

Pode até soar absurdo para os homens, mas o discurso da psicanalista ecoa entre jovens mulheres interessadas em temas feministas. “O cavalheirismo é uma forma de submissão que o patriarcado machista encontrou mais eficaz do que o machismo literal a que a gente está acostumada. O sexismo benevolente é muito mais sutil e cotidiano”, dispara Bianca Andrade, estudante de Psicologia de 22 anos de Natal, Rio Grande do Norte. “Para que abrir uma porta que eu sou capaz de abrir sozinha? É um romantismo falso, relacionado à ideia de que a mulher necessita de um homem para sobreviver.”

“De que adianta ajudar com as compras, se não ajuda a lavar a louça? Abrir a porta mas não fazer a faxina?”, provoca a socióloga Tica Moreno, 29 anos, membro da Marcha Mundial de Mulheres, que alerta para a possibilidade, aventada pelas feministas, de que o cavalheiro seja o outro lado do agressor, assim como seria uma face disfarçada do machismo. “Ser cavalheiro não significa que o cara será gente boa, mesmo porque o cavalheirismo é no espaço público e a violência, no privado.”

A psicóloga alemã Julia Becker reforça a controversa ideia de que o cavalheiro, como o médico e o monstro, pode esconder com amabilidades um alterego tenebroso. “Homens que endossam o sexismo hostil também podem endossar o benevolente. Se uma mulher decide confrontar o machismo, ela provavelmente está sujeita a experimentar o hostil”, defende. Becker enumera outros insuspeitos efeitos adversos do cavalheirismo: prejudica a performance cognitiva feminina; faz a mulher esperar pelo príncipe encantado em vez de perseguir os próprios objetivos; aumenta a crença de que a sociedade é justa; desmotiva as mulheres a se engajarem em ações pela igualdade de gêneros.

“O principal problema do machismo benevolente é que as mulheres são tratadas como criaturas maravilhosas, mas também como incompetentes”, explica a psicóloga. Ela refuta com veemência as acusações de que o feminismo estaria matando o cavalheirismo. “Estes argumentos também são machistas. O romance sem cavalheirismo, que subordina às mulheres ao homem, pode levar a um relacionamento muito mais satisfatório”. Pergunto a Julia se seu marido não reclama de ela rejeitar ser tratada com cavalheirismo, e ela responde: “Atualmente meu marido fica em casa, cuidando das crianças, enquanto eu trabalho.”

Uma das questões que incomodam as feministas é o sexismo benevolente no ambiente de trabalho: aquelas ofertas, “beirando o assédio”, que os homens fazem para ajudar as colegas do sexo feminino (sobretudo as mais atraentes) em tarefas prosaicas, partindo de estereótipos como “elas não sabem lidar com computadores”. O problema, apontam, é que, se as mulheres recusam, são tidas como “frias”, por um lado, embora competentes por outro. Se aceitam a oferta, no entanto, são carimbadas como “afáveis”, porém ineptas. O mesmo não acontece quando é um homem a rejeitar o auxílio.

No cotidiano das relações amorosas, a ação cavalheiresca mais execrada pelas feministas é quando os parceiros sacam a carteira para pagar a conta do restaurante após um jantar romântico, em vez de rachar a despesa, como preferem. Oferecer-se para pagar a conta embutiria certa sensação de superioridade por parte do homem –e por trás da atitude aparentemente inocente de pagar a conta no restaurante estaria o fato incômodo e persistente de que as mulheres ganham menos do que os homens, inclusive quando ocupam as mesmas posições no trabalho.

“Já tive brigas enormes na hora que vem a conta. Para começar, o garçom entrega direto para o homem”, diz Carol Peters, 21 anos, estudante de Letras da USP e integrante do setorial de mulheres do PSOL. “Os homens não entendem porque é importante para a mulher pagar a conta. Se um dia eles pagam, tudo bem, mas quando a gente quer devolver a gentileza, não aceitam. Parece que isso mexe com a virilidade deles. Aliás, essa noção de virilidade, de que o homem tem que ser viril, não é positiva. Deve ser desconstruída também.” Opa.

Nos anos 1990, Camille Paglia comprou briga com o movimento feminista ao defender as diferenças entre os gêneros pronunciando frases como: “O sexo entre os dois sexos é bom porque as mulheres e os homens são diferentes. Nós queremos apenas direitos iguais na sociedade, não queremos que os homens sejam como as mulheres.” Hoje, em dia, porém, o discurso dominante é o da diluição das diferenças até um ponto que, como acredita Regina Navarro Lins, em 30 ou 40 anos toda a humanidade será bissexual. “Masculino e feminino não existem, isso está acabando”, defende. “Essa divisão foi forjada e aprisionou ambos os sexos.”

Os homens, é claro, não concordam nem um pouco. “A resposta a essa postura das mulheres é esse homem mais feminino, mais sensível, mais dependente, que não sei se está agradando por aí”, desdenha o jornalista e músico Marvio dos Anjos, 34 anos, que escreve sobre relacionamentos em um blog. “Há mulheres que acreditam tanto no feminismo que passam a psicanalisar todo e qualquer ato que o homem faça a seu respeito. E aí, tudo que se pretende carinho passa por agressão e dominação. É como dormir com o inimigo”, critica. “Não se pode hiper-racionalizar as relações, isso é negar a própria humanidade.”

Cavalheiro assumido, “nota 9″ na escala segundo ele próprio, do tipo que puxa a cadeira e abre a porta, o escritor Xico Sá, autor de Modos de Macho & Modinhas de Fêmea (Record), acha que pode, sim, existir um verniz de machismo disfarçado aí. “Mas ver como negativos os bons modos é pura paranóia delirante. Hoje em dia vejo os homens, principalmente os mais jovens, tratando as meninas como se fossem ‘manos’. Não tenho o direito de tratar bem uma mulher?”

Xico acha que, de fato, as meninas andam rejeitando o cavalheirismo e que o homem está meio perdido diante das reações delas. Já criaram confusão com ele, por exemplo, ao se antecipar para pagar a conta, mas diz que não vai mudar o estilo por causa disso. “Um cavalheiro convicto não abandona seus gestos, sob pena de sentir-se um tosco, grosseiro.” Pergunto se é gentil com os homens. “Também. O que muda é que no código do nosso faroeste masculino às vezes xingar o amigo com um palavrão, por exemplo, significa um ato de ternura.” E o que você faria se uma mulher dissesse “vai abrir a porta para sua mãe”? “Diria: ‘Perdão pelos bons modos, minha querida, passar bem’”.

“Não é preciso abrir porta para cortejar uma mulher. Não é isso que elas querem, não é o que estão buscando”, defende o escritor Alex Castro, do blog Papo de Homem, autor de vários textos onde condena o cavalheirismo e uma das raras vozes masculinas em favor da tese do “sexismo benevolente”. Segundo Alex, não dá para generalizar o que “as mulheres” querem. “É preciso descobrir o que a mulher que você deseja quer, isso sim”, defende, e diz que é ótimo que o homem esteja confuso. “Ao recusar o cavalheirismo, a mulher está negando uma narrativa milenar, de um grupo dominante. Para os homens, estar em dúvida é um excelente começo. É melhor do que ter certezas.”

Há um aspecto, no entanto, que homens e mulheres parecem ignorar neste debate e que vai além de feminismo e machismo, de gentilezas e cavalheirismos: e se abrir portas, puxar a cadeira e pagar a conta para uma “dama” for apenas algo datado, que se tornou simplesmente cafona?

By: Cynara Menezes

(Reportagem originalmente publicada na revista CartaCapital)


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