sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Brasileiro não lê.



Num país de tão poucas leituras, 
Vanessa lança seu olhar afiado e cativante
 para uma das causas dessa falta de hábito.


Minha bronca com as bibliotecas
Vanessa Barbara

Como dei a entender na coluna anterior, não tenho um histórico amigável com bibliotecas públicas. Durante toda a infância, adolescência e parte da vida adulta frequentei obstinadamente as bibliotecas do meu bairro (Pedro Nava, Nuto Sant’anna, Narbal Fontes), as centrais (Mário de Andrade, Centro Cultural São Paulo, Centro Cultural Fiesp) e especializadas (bibliotecas da PUC e da USP), enfrentando uma porção de obstáculos.

Ainda que existam honrosas exceções e o cenário esteja lentamente melhorando, muitas bibliotecas são como túmulos, lugares escuros e ermos onde não entra luz desde 1997 e os livros vivem trancados em cofres. Os funcionários parecem prontos para dificultar as coisas, desdobrando-se em regras, fiscalizações e caras feias.

A começar pelo guarda-volumes e a proibição de entrar com bolsas, mochilas, pastas, fichários e laptops. Como a biblioteca não se responsabiliza por objetos extraviados, é preciso levar consigo o caderno, a caneta, a carteira, o celular, o porta-moedas, a manteiga de cacau e as chaves, equilibrando tudo em uma das mãos. Nenhum tipo de alimento ou bebida pode ser consumido lá dentro. De todas as restrições, a do laptop é a mais absurda.

Até pouco tempo atrás, só era permitido levar para casa dois livros por pessoa (hoje são quatro), o que me obrigava a acumular empréstimos em nome de todos os membros da família. Dois livros não eram nada para quem lia cinco por semana e tinha de fazer trabalhos de faculdade e pesquisas com uma porção de fontes. Daí as múltiplas carteirinhas, isso quando a bibliotecária era legal e deixava retirar livros usando a identidade de um familiar ou ente querido — arriscando-se a levar uma punição na corte marcial de biblioteconomia e tornando-se cúmplice do crime de falsidade ideológica.

O prazo de empréstimo é de duas semanas, com a possibilidade de uma única renovação. Há regras especiais para mestrandos, doutorandos e professores, mas é preciso apresentar comprovantes. Uma das diretrizes exclusivas para pesquisadores se refere à possibilidade de empréstimo de dez itens durante 21 dias — mas há uma cláusula que diz que não são liberados mais de cinco livros do mesmo assunto.

Uma das boas implementações recentes do Sistema Municipal de Bibliotecas em São Paulo foi o cadastro unificado, permitindo que o leitor utilize a mesma carteirinha em todas as bibliotecas da rede. (Antes não era assim: sei que, a certa altura, carregava sete ou oito carteirinhas amarelas de bibliotecas diferentes com nomes diferentes, feito uma espiã da bibliofilia internacional.)
O cartão, porém, ainda é preenchido à mão, renovado anualmente e carimbado a cada devolução. A ficha de cadastramento dos livros também é manual. A pesquisa eletrônica no acervo, disponível num computador conectado à internet, às vezes não funciona.

Além disso, os horários são restritivos: a Biblioteca Municipal Pedro Nava abre de segunda a sexta, das 9 às 18h, e aos sábados das 9 às 16h (viva!!). Contudo, “os serviços de inscrição de usuário e empréstimo iniciam-se após quinze minutos decorridos da abertura da biblioteca e encerram-se quinze minutos antes de seu fechamento”.

Em certas bibliotecas, não se recomenda flanar pelas estantes sem objetivo definido — um funcionário pode ficar te seguindo ou perguntando insistentemente: “Mas você está procurando algo em específico? Quer ajuda?”. Alguns tratam o usuário como um potencial ladrão de livros, considerando-o culpado até que prove o contrário.

(Sim, eu sei que não são todos assim e que há ótimos bibliotecários por toda parte.)

Em muitos casos, o problema se encontra na presunção de poder assumida pelos funcionários, que abandonam a ideia de prestação de serviços à população para exercer uma autoridade quase policial referendada pelo regulamento da instituição. Colocam as normas à frente das pessoas e defendem seu território como numa brincadeira de pique-bandeira.

Á tomei broncas homéricas na Biblioteca Sérgio Milliet, do Centro Cultural São Paulo (Vergueiro), uma das poucas da cidade que abre aos domingos e feriados. Uma vez fui consultar na prateleira uma sucessão de livros da mesma área, tirando-os da estante e recolocando-os no lugar, o que é naturalmente uma contravenção das mais graves. O bibliotecário me chamou a atenção em voz alta, dizendo que, uma vez retirados da estante, os livros devem ser depositados sobre as mesas ou num carrinho, ainda que você apenas puxe o título pela lombada para ver a capa. Aparentemente o leitor médio não tem capacidade de devolver o volume no mesmo lugar, gerando uma confusão de proporções épicas na catalogação dos exemplares. Não se determinou com precisão em quantos centímetros era permitido puxar o livro sem configurar uma “retirada” — por via das dúvidas, acabei abreviando a consulta, sobretudo após depositar uma pilha de oito livros na mesa e receber um olhar homicida.

Testemunhei pitos quase militares em gente que falou um pouco mais alto, ainda que o contraventor só estivesse soletrando o título do livro para um funcionário meio surdo. Algumas bibliotecas limitam a quantidade de obras que o usuário pode consultar na mesa, outras só liberam o volume desejado mediante requerimento (é o funcionário que vai pegar no acervo), e há ainda as que deixam bem claro que estão lhe fazendo um grande favor. Já ouvi um bibliotecário lamentando que havia muita demanda por livros naquele dia, que um sujeito apareceu às cinco e meia para abrir ficha (vê se pode) e que ele não via a hora de se aposentar.

Para essas pessoas, o ideal é que não houvesse leitores e as bibliotecas fossem apenas depósitos de volumes impecavelmente enfileirados, incólumes, jamais lidos.

FONTE: Blog da Companhia,
Editora Companhia das Letras


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