Num país de tão poucas leituras,
Vanessa lança seu olhar afiado
e cativante
para uma das causas dessa falta de hábito.
Minha
bronca com as bibliotecas
Vanessa Barbara
Como dei a entender na coluna anterior, não
tenho um histórico amigável com bibliotecas públicas. Durante toda a infância,
adolescência e parte da vida adulta frequentei obstinadamente as bibliotecas do
meu bairro (Pedro Nava, Nuto Sant’anna, Narbal Fontes), as centrais (Mário de
Andrade, Centro Cultural São Paulo, Centro Cultural Fiesp) e especializadas
(bibliotecas da PUC e da USP), enfrentando uma porção de obstáculos.
Ainda que existam honrosas exceções e o cenário esteja
lentamente melhorando, muitas bibliotecas são como túmulos, lugares escuros e
ermos onde não entra luz desde 1997 e os livros vivem trancados em cofres. Os
funcionários parecem prontos para dificultar as coisas, desdobrando-se em
regras, fiscalizações e caras feias.
A começar pelo guarda-volumes e a proibição de entrar com bolsas,
mochilas, pastas, fichários e laptops. Como a biblioteca não se responsabiliza
por objetos extraviados, é preciso levar consigo o caderno, a caneta, a
carteira, o celular, o porta-moedas, a manteiga de cacau e as chaves,
equilibrando tudo em uma das mãos. Nenhum tipo de alimento ou bebida pode ser
consumido lá dentro. De todas as restrições, a do laptop é a mais absurda.
Até pouco tempo atrás, só era permitido levar para casa dois
livros por pessoa (hoje são quatro), o que me obrigava a acumular empréstimos
em nome de todos os membros da família. Dois livros não eram nada para quem lia
cinco por semana e tinha de fazer trabalhos de faculdade e pesquisas com uma
porção de fontes. Daí as múltiplas carteirinhas, isso quando a bibliotecária
era legal e deixava retirar livros usando a identidade de um familiar ou ente
querido — arriscando-se a levar uma punição na corte marcial de biblioteconomia
e tornando-se cúmplice do crime de falsidade ideológica.
O prazo de empréstimo é de duas semanas, com a possibilidade de
uma única renovação. Há regras especiais para mestrandos, doutorandos e
professores, mas é preciso apresentar comprovantes. Uma das diretrizes
exclusivas para pesquisadores se refere à possibilidade de empréstimo de dez
itens durante 21 dias — mas há uma cláusula que diz que não são liberados mais
de cinco livros do mesmo assunto.
Uma das boas implementações recentes do Sistema Municipal de
Bibliotecas em São Paulo foi o cadastro unificado, permitindo que o leitor
utilize a mesma carteirinha em todas as bibliotecas da rede. (Antes não era
assim: sei que, a certa altura, carregava sete ou oito carteirinhas amarelas de
bibliotecas diferentes com nomes diferentes, feito uma espiã da bibliofilia
internacional.)
O cartão, porém, ainda é preenchido à mão, renovado anualmente e
carimbado a cada devolução. A ficha de cadastramento dos livros também é
manual. A pesquisa eletrônica no acervo, disponível num computador conectado à
internet, às vezes não funciona.
Além disso, os horários são restritivos: a Biblioteca Municipal
Pedro Nava abre de segunda a sexta, das 9 às 18h, e aos sábados das 9 às 16h
(viva!!). Contudo, “os serviços de inscrição de usuário e empréstimo iniciam-se
após quinze minutos decorridos da abertura da biblioteca e encerram-se quinze
minutos antes de seu fechamento”.
Em certas bibliotecas, não se recomenda flanar pelas estantes
sem objetivo definido — um funcionário pode ficar te seguindo ou perguntando
insistentemente: “Mas você está procurando algo em específico? Quer ajuda?”.
Alguns tratam o usuário como um potencial ladrão de livros, considerando-o
culpado até que prove o contrário.
(Sim, eu sei que não são todos assim e que há ótimos
bibliotecários por toda parte.)
Em muitos casos, o problema se encontra na presunção de poder
assumida pelos funcionários, que abandonam a ideia de prestação de serviços à
população para exercer uma autoridade quase policial referendada pelo
regulamento da instituição. Colocam as normas à frente das pessoas e defendem
seu território como numa brincadeira de pique-bandeira.
Á tomei broncas homéricas na Biblioteca Sérgio Milliet, do
Centro Cultural São Paulo (Vergueiro), uma das poucas da cidade que abre aos
domingos e feriados. Uma vez fui consultar na prateleira uma sucessão de livros
da mesma área, tirando-os da estante e recolocando-os no lugar, o que é
naturalmente uma contravenção das mais graves. O bibliotecário me chamou a
atenção em voz alta, dizendo que, uma vez retirados da estante, os livros devem
ser depositados sobre as mesas ou num carrinho, ainda que você apenas puxe o
título pela lombada para ver a capa. Aparentemente o leitor médio não tem
capacidade de devolver o volume no mesmo lugar, gerando uma confusão de
proporções épicas na catalogação dos exemplares. Não se determinou com precisão
em quantos centímetros era permitido puxar o livro sem configurar uma
“retirada” — por via das dúvidas, acabei abreviando a consulta, sobretudo após
depositar uma pilha de oito livros na mesa e receber um olhar homicida.
Testemunhei pitos quase militares em gente que falou um pouco
mais alto, ainda que o contraventor só estivesse soletrando o título do livro
para um funcionário meio surdo. Algumas bibliotecas limitam a quantidade de
obras que o usuário pode consultar na mesa, outras só liberam o volume desejado
mediante requerimento (é o funcionário que vai pegar no acervo), e há ainda as
que deixam bem claro que estão lhe fazendo um grande favor. Já ouvi um
bibliotecário lamentando que havia muita demanda por livros naquele dia, que um
sujeito apareceu às cinco e meia para abrir ficha (vê se pode) e que ele não
via a hora de se aposentar.
Para essas pessoas, o ideal é que não houvesse leitores e as
bibliotecas fossem apenas depósitos de volumes impecavelmente enfileirados,
incólumes, jamais lidos.
FONTE: Blog da Companhia,
Editora Companhia das
Letras
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