“Todas as
famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Com
esta frase, Tolstói introduz o leitor no universo de Anna Kariênina. Um dos seus mais famosos romances, escrito entre
1873 e 1877.
É longo o tempo
que nos separa da personagem do romance. No entanto, o seu sofrimento, causado
pela separação do marido e do filho, ressoa na história de muitas mulheres ainda
hoje. Os nossos valores morais não são mais aqueles do século XIX, e a
emancipação econômica das mulheres provocou a mudança de vários valores
comportamentais. Mas, mesmo com tantas mudanças, ainda é muito difícil aceitar
que uma mulher, que ocupa a função de mãe e esposa, se apaixone por outro homem
e deseje viver essa paixão. Mesmo que, para isso, necessite desfazer o seu
casamento.
Quando esta
paixão “acidental” acontece na vida de um homem, ela é rapidamente absorvida
pelo grupo familiar e social que o cerca. Ou seja, ainda é mais fácil para um
homem pedir a separação e entrar em um novo relacionamento, do que para uma
mulher. Embora a dor narcísica causada pela separação seja igual para ambos os
sexos.
Porém, há algo
que diferencia esse tipo de separação – quando se é trocado por outro parceiro
– que a torna muito mais difícil para certos homens. Esse algo está no fato de
que muitos deles transformam suas parceiras em um objeto fetichista. Objeto
fetichista é aquele objeto, privilegiado por alguns homens, como objeto erótico.
Um objeto fetichista por excelência é o sapato: é o mais conhecido, mas não é o
único. Existem vários objetos da vestimenta feminina que podem ser elevados à
categoria de fetiche. Entre eles, claro, o próprio corpo feminino. Veja que
aqui não é o ser da mulher que está em jogo, mas o seu corpo.
Todo ser humano cria
a sua própria fantasia erótica. Essa fantasia é uma cena, uma imagem que se
constrói mentalmente e que possui características singulares. O objeto
fetichista, quando constituído, ocupa um lugar central na fantasia masculina.
Se ele vem a faltar o homem não consegue provocar erotização em si mesmo: não
consegue se erotizar. Quando uma mulher ocupa a função desse objeto na vida
erótica do homem, ou melhor, quando o corpo da mulher ocupa essa função, a
perda desse corpo é sentida como a perda de um objeto muito valioso. Mais
valioso que a própria imagem narcísica: que seu próprio eu. E saber que este
objeto vai ser perdido para sempre - afinal, ela está apaixonada por outro - tem
um efeito desesperador.
Em alguns casos,
o desejo masculino é o de transformar esse objeto iluminado num abjeto
asqueroso. Foi o que aconteceu com o marido de Anna. Tirou-lhe toda a
dignidade. Denegriu sua vida de uma forma tão violenta, que ela própria não
conseguiu mais viver consigo mesma. Em outros casos, os mais trágicos, o homem
prefere eliminar esse objeto a perdê-lo. Essa foi a opção de Otelo, na tragédia de Shakespeare. Uma opção devastadora que, como sabemos, está se repetindo
com muita frequência nos dias de hoje.
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