Diz o filósofo inglês Bernard Williams que a vergonha está ligada à visão: a pessoa sente-se envergonhada quando alguém a vê fazendo algo vergonhoso ou numa postura vergonhosa; por isso a pessoa envergonhada quer sumir, desaparecer, entrar chão adentro. A culpa está ligada a uma peculiar forma de audição: a audição da implacável voz interior, que acompanha o culpado ainda que ele se enfie em qualquer buraco.
A vergonha ocorre, em geral, de forma imediata, aguda, visível: a pessoa fica vermelha, sua expressão facial se altera. Portanto na vergonha o componente emocional pode ser intenso. Já a culpa se instala mais lentamente, cronicamente; o componente emocional, quando existe, não é facilmente perceptível. A vergonha exige providências; depois de comer o fruto proibido, Adão e Eva, constatando que estão nus (já estavam nus antes, mas a nudez tornou-se instantaneamente vergonhosa), correm a cobrir "as vergonhas" com folhas. Também é um exemplo a história da mulher que, a bordo de um avião da American Air-lines, tentou disfarçar o odor de seus malcheirosos flatos acendendo fósforos, o que é proibido e levou a um pouso de emergência. Esta senhora poderia fazer de conta que nada tinha a ver com o cheiro dos gases; mas a vergonha obriga a pessoa a se acusar, a tomar providências.
A culpa nem sempre motiva uma ação; a pessoa pode se sentir culpada durante décadas e nada fazer a respeito, mesmo porque, como veremos, a culpa pode ser inconsciente e neste caso a pessoa nem sabe o que fazer. A vergonha é uma resposta à avaliação alheia, ao passo que a culpa resulta de uma avaliação interna, equivocada ou não; privilegia, por tanto, a autonomia individual. A culpa não precisa de audiência, de público; a vergonha ocorre mediante a desaprovação ou o deboche de outros.
Fragmento do livro Enigmas da Culpa, de Moacyr Scliar
Nenhum comentário:
Postar um comentário