Estreia "Flores Raras", de Bruno Barreto. O filme - baseado
no livro "Flores Raras e Banalíssimas", de Carmen L. Oliveira -nova
edição pela Rocco - conta a história dos 17 anos (mais ou menos) que Elizabeth
Bishop passou no Brasil.
Na sua chegada ao porto de Santos, em 1951, Bishop já era uma
poeta reconhecida, "poet laureate" dos EUA. Nota: "poet
laureate" é um cargo de poeta oficial nacional, que raramente me
desapontou. Carol Ann Duffy, uma de minhas poetas preferidas, ainda é "poet
laureate" do Reino Unido; Billy Collins e Louise Glück foram "poet
laureate" dos Estados Unidos, sem contar Robert Frost e Joseph Brodsky.
Aliás, eu descobri Collins e Duffy quando se tornaram "poet laureate"
de seus países.
Enfim, Bishop estava circum-navegando a América do Sul; viajando,
ela queria aliviar sua melancolia. Como Robert Lowell lhe diz lindamente no
filme: ela procurava a "cura geográfica". Em Santos, a poeta desceu
do barco com a ideia de passar uma semana ou duas visitando uma amiga, Mary
Morse, que era então a companheira de Lota de Macedo Soares.
À primeira vista, o encontro de Elizabeth Bishop e Lota não foi
muito promissor. Aos olhos de Lota, maravilhosamente interpretada ou inventada
por uma inesquecível Glória Pires, Bishop devia parecer como uma chata, por
grande poeta que fosse. E é provável que Bishop se assustasse pela presença
expansiva de Lota. Agora, uma sugestão: é sempre bom desconfiar dos outros ou
outras que seu parceiro ou parceira acha imediata e excessivamente desinteressantes.
De qualquer forma, o encontro de Elizabeth e Lota foi o começo de
uma relação que é, para mim, um protótipo de história de amor que vale a pena.
Alguns dirão que não acabou bem. Mas esse não é um argumento. O que importa
mais é que, nos anos em que elas se amaram, cada uma delas deu o melhor de si:
Bishop escreveu os poemas de "North and South" (que lhe valeram o
prêmio Pulitzer), e Lota concebeu e realizou o aterro de Flamengo, no Rio de
Janeiro.
É frequente que, num casamento, o cônjuge, por adorável que seja,
apareça como alguém que limita nosso desejo -às vezes, ele, de fato, compete
com nossa vida e domestica nossos sonhos. Esse não foi o caso de Elizabeth e
Lota: cada uma potencializou o gênio da outra -essa é uma flor rara.
Detalhe crucial, "Flores Raras" não é um filme sobre um
amor homossexual, simplesmente porque o fato de que se trata de duas mulheres é
indiferente -o espectador não tem nem tempo nem disposição para aprovar ou para
recriminar o amor de Elizabeth e Lota.
Talvez, na sociedade privilegiada e culta do Rio de Janeiro dos
anos 1950-1960, pouco importasse que Lota e Elizabeth fossem duas mulheres. Não
sei. O fato é que Bruno Barreto conseguiu contar a história de Lota e Elizabeth
de tal forma que o gênero e a opção sexual das amantes é muito menos importante
do que o amor entre elas.
Ontem, em São Paulo, no "Fronteiras do Pensamento",
palestrou Anthony Appiah (professor em Princeton, autor de "O Código de
Honra", Cia das Letras). Numa entrevista a Cassiano Elek Machado, na Folha
de 10/8, Appiah menciona a revolução moral recente pela qual "há 20 anos,
a maioria das pessoas (nos EUA) diria que a ideia do casamento gay é totalmente
ridícula. Hoje, se você falar com jovens americanos, 70% deles vão defender sua
aprovação".
Pois bem, "Flores Raras" não precisa caber num catálogo
de "filmes homossexuais" porque cabe no dos grandes filmes de amor e
porque já pertence a uma época em que a orientação sexual talvez seja, enfim,
inessencial.
Não me lembro de um momento de minha vida (sequer a infância) em
que a orientação sexual fosse, para mim, um fato relevante. Um pilar de minha
educação moral foi minha avó, que era católica devota e moralmente
preconceituosa, mas dotada de senso prático -se eu fosse homossexual, ela
provavelmente se tornaria antipapal (talvez anglicana) na hora.
O outro pilar foi meu pai, para quem a própria ideia de
"anormalidade" era uma bizarrice. Embora fosse especialista, tinha
uma prática de médico de família: de manhã, ele visitava seus pacientes a domicílio.
Quando eu estava de férias, ele pedia que eu o acompanhasse. Dizia que era para
lhe fazer companhia. Suspeito que ele quisesse me ensinar a reconhecer meus
semelhantes na diversidade do mundo, das casas, dos quartos e das vidas. Enfim,
divago. Não perca "Flores Raras".
Contardo Calligaris
Jornal Folha de São Paulo