sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Ela não perdeu a doçura


Marina da Silva conta um pouco da sua história de vida. Uma vida, como de muitas outras mulheres, cheia de lutas e superações.

Comecei minha existência no seringal, em um lugar chamado Bagaço, a 70 quilômetros de Rio Branco. Aprendi com meus pais a fazer tudo o que um menino ou uma menina que vive no seringal aprende. Aos 10 anos, o meu trabalho e o de meus irmãos era levantarmos todo dia muito cedo para ir cortar seringa. Eu, particularmente, acordava sempre às 4 da manhã, cortava uns gravetos, pegava uns pedaços de seringuins, acendia o fogo, fazia o café e uma salada de banana perriá com ovo. Esse era o nosso café da manhã. Aprendi a sobreviver às secas do Nordeste e depois à floresta úmida da Amazônia, tirando dali a sobrevivência de minha família.



Muito do que sou devo à minha família "sui generis", uma família de matriarcas. Fui criada pela minha avó em uma casa cheia de pessoas idosas. Eu criança no meio de seis adultos, registrava o que havia de melhor na experiência de vida daquelas pessoas. Tinha 14 anos quando minha mãe morreu. Fiquei um ano sem poder trabalhar porque estava com hepatite. No entanto diagnosticaram como malária. Quase morri. Impossibilitada de trabalhar, comecei a sentir uma tristeza muito grande. Hoje eu sei que chamam isso de depressão, mas naquele tempo a gente chamava aquilo de tristeza esquisita.


Certo dia fiz a opção de ser freira. Minha avó dizia: "Minha filha, freira não pode ser analfabeta". Eu não estudava porque, não tinha escola nos seringais. Resolvi que tinha que cuidar da minha saúde e estudar. Sempre fui uma pessoa de fé. Comecei a rezar durante um mês, pedindo que Deus tocasse o coração do meu pai e ele me deixasse ir para a cidade estudar. Quando fiz o pedido ele respondeu: "Você quer ir agora ou na outra semana, porque a gente tem que vender borracha para você levar algum dinheiro". Ajoelhei numa moita e rezei. Fiquei feliz da vida. A noticia chegou aos ouvidos do meu avô que hoje tem 102 anos. A oposição morre de medo que eu viva o mesmo tanto que ele. "Que história é essa dessa menina ir para rua estudar? Ela tem que ficar aqui cuidando da casa. Daqui a nove meses ela vai voltar embuchada e você não pode dizer que eu não avisei", vociferou.


Mas eu fui. Trabalhei como empregada doméstica e comecei a cursar o primário. Depois veio o ginásio. Acordava às 5 horas para aguar a horta. Terminava de limpar a cozinha às 8 da noite. Comprei várias velas, um despertador velho, tapei as frestas da porta para que a irmã Verônica não visse a claridade e estudava até as 3 da manhã. Durante um mês estudei muito e consegui passar.


No pré-noviciado ouvia falar num tal de Chico Mendes. Um dia vi um cartaz anunciando um curso de formação política para lideranças sindicais. Me inscrevi. A irmã perguntou que curso era e eu respondi que era oferecido pelo padre. Se ela soubesse que era para ouvir Leonardo Boff ela não tinha deixado. Os dois foram pessoas importantes em minha adolescência. Fiquei encantada com a Teologia da libertação. Uma ideia que a gente conhece a árvore pelos frutos que ela dá. De que a árvore que não dá frutos deve ser jogada no fogo.


Dali pra frente o desejo de ser freira ficava cada vez mais distante. Uma vida de oração já não era mais possível. Voltei para a periferia, perdi o vestibular em 79 por causa de uma hepatite. Em 1980 conheci o pai dos meus filhos. Já estava casada quando participei de um grupo de teatro amador que se chamava "Semente". Fazia o papel de chita, uma macaca imperialista que junto com o Tarzan queria invadir a Amazônia. A carreira artística não prosperou muito, mas aprendi a costurar e comecei a fazer figurinos de teatro. Uma madrugada acordei com os gritos do meu amigo Alberto Rocha gritando: "Macaca, tu passou!" Eu havia passado no vestibular para história.


Milhares de pessoas estão aguardando oportunidades. Mas, infelizmente elas são exceção, não são regra. O sistema durante muito tempo tem apoiado as exceções e mantém um discurso reacionário e conservador. Durante muito tempo alguns tentaram me rotular como exemplo da exceção para reforçar esse discurso conservador. Graças a Deus, a minha consciência política nunca me deixou me prestar a esse tipo de papel. Sempre vou trabalhar para que mais e mais pessoas possam ter oportunidades.





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